Não podemos confundir história com tradição, pois não são a mesma coisa. História é a narrativa dos fatos, ainda que tal narrativa seja unilateral. Diz-se que após uma guerra os vencedores contam a História, ou seja, narram os fatos como lhes convém. A tradição não tem a ver com a narrativa dos fatos, mas com a preservação das práticas, a partir de uma interpretação dos mesmos (ou das conveniências). Uma está contida na outra, a tradição está contida na história e a história traz à memória a tradição.
O Cristianismo, à parte o seu elemento sobrenatural (transcendental), é histórico (apoiado por fatos) e tem histórias, boas e más. Mas o Cristianismo também tem, dentro de sua história, tradição; melhor, várias tradições. Tradição católica, tradição ortodoxa, tradição copta, tradição armênia, tradição protestante. Cada uma dessas tradições também traz suas variantes, ou seja, a história é uma, a tradição não. Dentro da tradição católica é possível identificar variações da prática, isto é, a tradição pode se ajustar em função de atenuantes.
Não há como romper com a história: ele ocorreu e ponto. Há como romper com a tradição. Lutero talvez seja o ícone dessa ruptura. No entanto Lutero, rompendo com a tradição, manteve-se na história – e fez história! Não há como escapar. O monge alemão entendeu que aquele modelo, aquela práxis, já não amparava as convicções que ele sustentava a partir da sua leitura da Escritura. Ele, então, rompeu com a tradição e entrou para a história.
A história é história por si e pode ser revista, aclarada. Tradições são mantidas por movimentos, e movimentos são estimulados por aqueles que avançam numa direção. No Brasil temos o movimento reformado, o movimento gospel, o movimento carismático, o movimento pentecostal, o movimento evangélico, o movimento liberal, o movimento da libertação – que já não se movimenta tanto e encostou na teologia pública tentando avançar um pouco mais. Há outros.
Quando perdem suas forças, obviamente, os movimentos param, ou ficam agonizando, como o movimento liberal da teologia no início Século 20 (o liberalismo decorrente é que insiste em vingar no Brasil). Quando alguém não quer mais mover-se numa direção, muda de movimento. Ou para. Mas todos estamos – se estamos caminhando – num movimento. Não podemos, isso sim, é sair da história. A história se mantém, segue, abarcando os movimentos e denunciando tradições espúrias, desequilibradas e incoerentes. A história tem esse “dom da revelação”.
Jesus disse que parte dos judeus invalidava (distorcia) a história (das palavras de Deus) valendo-se da tradição (das palavras humanas). Dado momento a tradição quer sobrepujar a história e fazer-se maior; algo como o episódio do Diabo querendo usurpar o trono de Deus. Talvez por isso o Diabo “curte” algumas tradições. Mas a história sempre será maior que o movimento e maior que a tradição. A maior duração de um movimento o torna tradição, mas nunca história. Lembram do G-12? Virou história... agora é passado.
Portanto, quando pensamos interpretar a Palavra de Deus (que se revelou na história), não podemos abrir mão de considerar a história. A tradição é uma circunstância se comparada à história; é temporal. A história não. A tradição considera comportamentos temporais, circunstanciais, tendências, convergências localizadas, culturas. Isso não acontece com a história, já que ela é ampla e por isso mesmo nos faz ver à distância; favorece a imparcialidade.
Hoje podemos, olhando para a história, avaliar melhor os erros cometidos nas tradições. Às vezes chamamos “erros históricos”, não porque a história errou, mas porque foram erros que “entraram para a história”, por terem origem n’alguma tradição. Quer conferir? Leia a história.
E por que o texto? Para indicar que erramos menos quando consultamos a história, toda ela, antes de abraçar movimentos e criar tradições. Há muitos erros que poderiam ser evitados em nossa vida, e particularmente na vida cristã, se olhássemos com maior cuidado para a história. Deixaríamos de cometer enorme lista de erros apenas por observar a história. Mas envolvemo-nos em movimentos que anunciadamente não darão em lugar algum, apenas por descuido da história. Não há nada “muito” novo debaixo do sol.
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