sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Evangelho e cultura

A história da Igreja descreve algumas questões que, vez ou outra, retornam a pauta do dia, revelando que alguns pontos não são facilmente equacionados em relação a outros. Que Cristo é o único caminho para o Pai é ponto passivo, não se discute mais. Mas e a questão trazida pelo Rev. Julio Zabatiero em Evangelho e Cultura, da relação entre evangelho, cultura e contextualização tem surpreendido alguns cristãos ao longo dos séculos, notadamente aqueles envolvidos com a pregação do evangelho e com as missões.


O autor parte das definições de cultura e evangelho, pontuando cada uma delas de maneira clara e universalmente aceitas (embora não exclusivas), e indicando que nosso interesse, como fazedores de teologia, é “posicionar-se a respeito das relações entre Evangelho e Cultura” como tarefa fundamental. Mesmo tendo conceituado cada elemento da discussão, vemos, ainda, uma advertência de que “o Evangelho não é uma cultura, mas um conjunto de formas simbólicas originalmente construído através de um processo histórico em que Deus se revela à humanidade, no âmbito da sociedade e cultura judaicas”.

O destaque dado ao fato da existência de uma revelação de Deus à humanidade é notável, já que indica que, como revelação, (a) poderia ter sido manifestada a qualquer outra cultura ou sociedade e (b) não é – como de fato está explícito – uma cultura, como fruto da elaboração ou como produto essencialmente humano. Assim, “o Evangelho pode se encarnar em cada cultura na qual é anunciado, de modo que sua transcendência permaneça juntamente com a sua imersão nessa cultura específica” (grifo acrescentado).

O terceiro ponto, após trabalhar os conceitos de Evangelho e de cultura, é a questão da forma ou do modo como se dá a contextualização. E introduz o tema ou a discussão já antecipando que, “na medida em que a Palavra de Deus se encarna na igreja, o evangelho toma forma na cultura”, ou seja, a manutenção da genuinidade do evangelho (em oposição a uma pregação dogmática) promove a imediata ambientação da igreja à cultura na qual está inserida e a transformação da própria cultura – o que é, em última análise, uma resposta positiva a uma das funções do evangelho, que é a transformação do indivíduo. Esta é a avaliação de Mendonça e Velasques, sobre o fator que norteava as missões da corrente calvinista.

A outra corrente, de natureza “avivalista”, lidava com a conversão individual, “pela experiência pessoal e emotiva”. Nesta, notava-se a ruptura com o ambiente do indivíduo agora convertido, mas as mudanças eram notáveis “através da adoção de novos padrões de conduta”.

Concluindo, ambos os modelos frutificaram na cultura brasileira. E o mesmo, com pequenas ressalvas, poderia ser dito da inserção do Evangelho em outras culturas. William Carey (1762-1834), em missão pela Índia, decidiu que não pregaria contra o islamismo, mas que aproximaria dos indianos por meio do evangelho, mas isso decidiu apenas após anos sem colher um só fruto de seu trabalho no campo missionário.

Dessa forma, entendo ser necessária a contextualização, protegendo os princípios inegociáveis e negociando os parâmetros permitidos pelas Escrituras. O caminho deve permanecer sendo o mesmo anunciado pelo Senhor. Mas o modo como vamos andar por este caminho é determinado, ao que parece, pela topografia de cada cultura.

Citando Enio Müller, “a verdade não é um objeto do qual eu me aproprio, mas um caminho no qual eu ando”. E se ando por um caminho, é natural ver paisagens distintas a cada espaço percorrido.

Diante do protestantismo de missão em terras brasileiras, os brasileiros, muitos deles, não aceitaram a pregação norte-americana – e este é o questionamento que me ocorre diante do texto proposto. Mas será que foram os missionários dos EUA que abriram a porta para a importação da cultura daquele país? Sim, porque até então os padrões sociais eram determinados pelas matrizes católicas européias/portuguesas. Se foram esses missionários os responsáveis pela vinda dos hábitos e costumes norte-americanos e os brasileiros não aceitaram a fé que anunciavam, mas apenas a cultura – e esta de natureza questionável nas últimas décadas – são eles, em última análise, que podem ser responsabilizados pela atual situação na qual o brasileiro recebe como “sagrado” tudo o que desce ao hemisfério sul. Isto é apenas uma reflexão.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Espiritualidades contemporâneas


A fim de indicar a possibilidade de diferentes conceitos de espiritualidade discutidos hoje, dentro de cenários culturais e religiosos diversos, há dois textos recomendados pela academia. Um, de Ana Maria Tepedino, Espiritualidade: relações e conexões, parte do ponto de vista feminino e resvala na convicção de que questões milenares do âmbito social, de gênero (masculino x feminino), políticas e até mesmo econômicas podem ser resolvidas com a correta compreensão e formulação de uma nova sensibilidade espiritual, um ecocentrismo em vez de egocentrismo e a consequente promoção da saúde humana, social e, evidentemente, espiritual.


O outro texto, do Rev. Ricardo Barbosa de Souza, Espiritualidade e Espiritualidades, trilha um caminho bem diverso. Busca as raízes históricas da perda humana da espiritualidade, perda esta ocorrida após uma saudável explosão do cultivo desse aspecto da vida humana (e da própria relação com Deus e consigo), nos primeiros séculos da era cristã, passando pelo período monástico, medieval, escolástico e Reforma, desembocando no Iluminismo, quando a racionalidade sufocou a procura pelo significado espiritual do homem.

Mas esse “sufocamento” não passou desapercebido. O espírito humano “mandou a conta” por meio de uma sociedade sem referencias seguros e duradouros, emocionalmente doentia e desconectada da realidade mais ampla da vida, na qual são contemplados os elementos sociais, pessoais e transcendentais da experiência humana.

Identifico-me mais com a segunda proposta, pois diferente do primeiro texto, não aborta o olhar para do ambiente religioso – ao contrário – olha por meio da história e de seus desdobramentos sociais, mas usa as lentes da espiritualidade bíblica. O primeiro texto, apesar de ser apresentado por meio de um discurso que abusa das expressões e modismos mais atuais, lança um olhar para o alto sem ter lançado um fundamento para isso. Parece estar revestido de uma “aura” pós-moderna, com preocupações características do século 21, mas não trabalha com a herança recebida, e que nos legou a atual situação e configuração das coisas.

Assim, entendo que uma espiritualidade que faça sentido no século 21, não pode desconsiderar o homem, a compreensão que tem de si, mas partindo de um referencial adequado, qual seja, Deus. E que Deus ou que perspectiva de Deus? A partir da revelação contida na Palavra de Deus, na teologia cristã. A teologia cristã e sua ascendência (os textos bíblicos) lidam com aspectos emocionais e racionais promovendo a restauração do equilíbrio necessário para a formação de uma pessoa.

Essa pessoa, decorrente do exercício da espiritualidade que procura na teologia cristã o seu tutor, resultará num cidadão que vê a Deus, o próximo e o mundo no qual todos vivem e convivem harmoniosamente, como o ambiente social onde deverá ocorrer a manifestação da sua própria espiritualidade. Explico melhor. A reflexão teológica que parte da perspectiva cristã irá formar cidadãos para o mundo. Não irá formar cristãos para atuarem em seus guetos. A reflexão teológica cristã aponta para o valor da espiritualidade em função não de si mesmo, do isolamento, do sectarismo e alienação. Antes, leva a ver o mundo de Deus, com esse Deus presente, com as demais criações e criaturas de Deus.

Essa pessoa cuidará de promover a pacificação, terá um olhar ecológico, verá a Deus no próximo e a necessidade de estender a ele a misericórdia (que em última instância é proveniente de Deus). É nisso que se distingue a espiritualidade cristã. Ela não vê nas estruturas, nas demandas atuais e nos problemas pontuais o sinal de advertência. Ela faz uma leitura mais ampla e eleva o pensamento humano para, por meio dessa altitude, poder ver melhor e mais distante.

Para mim, espiritualidade é a prática de uma vida inserida na dinâmica social, que considera ou que leia o mundo e suas demandas com os olhos da Palavra de Deus. É ter a mente de Cristo e pensar os pensamentos dele nas tomadas de decisões em questões pessoais, religiosas, profissionais, sociais e políticas. É viver no mundo sem tirar os olhos de Deus. É como expressou o autor da carta aos Hebreus: “Olhando para Jesus, o autor e consumador da fé”, ou como orou Josafá, “Os nossos olhos estão postos em ti”. Josafá, rei, responsável pela segurança de Israel, estava cercado por três exércitos inimigos, mas mesmo assim não deixou de considerar a possibilidade da atuação e intervenção de Deus em sua causa militar.

Conseguir manter, nas mais diversas situações, a confiança em Deus, a presença diante dele e o equilíbrio que decorre essa postura é o objeto da espiritualidade, sua razão de ser e o seu objetivo.