quarta-feira, 28 de julho de 2010

Espiritualidade e saúde

O texto do Dr. Leo Pessini, A espiritualidade interpretada pelas ciências e pela saúde (2007), é uma importante e rica fonte de citações de renomados pesquisadores da área da saúde a respeito da secular discussão sobre religião e ciência. Aqui reside um aspecto que diferencia o enfoque do artigo, pois à questão “religião e ciência” (ou religião versus ciência), o autor acrescenta espiritualidade e saúde, elementos contemporâneos neste debate.


É conhecida a “batalha” travada entre os dois campos do conhecimento humano. Teólogos e cientistas acusam-se, refutam-se, rejeitam-se, argumentam contra e desdenham-se mutuamente, reivindicando legitimidade para o seu próprio discurso, para as suas próprias teses e teorias, para as suas cosmovisões.

Dentre muitos esclarecimentos que o artigo traz, é interessante destacar a distinção feita entre religião e espiritualidade. A religião é um sistema e é institucionalizada e a espiritualidade pode ser experimentada até mesmo por um ateu. Outro destaque importante para fixar a posição de cada área do conhecimento é a apontada pelo físico Marcelo Gleiser, de que a ciência ocupa-se em dar respostas para coisas do âmbito da natureza, enquanto que a religião vai lidar com o mundo da fé e da realidade sobrenatural.

De fato, baseado no que se pode observar no cenário religioso/espiritual (para não citar aqui diversas passagens das Escrituras do Novo Testamento) não é coerente desprezar as ocorrências que testemunham no sentido de que algo verificável (base do método científico) tem ocorrido. Os relatos de cura nos Evangelhos, os testemunhos ouvidos em nossos dias, todos são elementos palpáveis de que há uma relação umbilical entre os aspectos físicos e espirituais no ser humano.

O estudo etimológico do Antigo Testamento, por exemplo, revela que não há uma palavra no idioma hebraico para corpo. Não há distinção entre os âmbitos físico-químico e espirituais do ser. Alma ou alma vivente é o modo como os autores daquela porção das Escrituras referem-se ao homem. Uma unidade indivisível, um sistema fechado onde existem causas e efeitos próprios. Somente com os gregos veio o conceito de corpo físico e corpo imaterial, o que, mesmo assim, não elimina o vínculo e as reações correspondentes que podem ocorrer quando há desequilíbrio em algum desses “corpos” e o efeito que um provoca no outro.

Um conhecido meu, psiquiatra, confidenciou-me que já tratou casos de pacientes com dificuldades em sentir-se perdoado. Embora tivesse sido assistido em algumas seções de aconselhamento e terapia, somente a ministração de drogas que atuam em elementos químicos específicos nos neurotransmissores pode afastar a sensação de rejeição da divindade.

Poderia, aqui, dar o testemunho da minha própria conversão. Após mais de seis anos na dependência de drogas como cocaína e maconha, uma oração feita por uma cristã levou-me a libertadora. Na linguagem do artigo, houve cura somática por uma ação no âmbito da espiritualidade. Não fiquei internado num centro de reabilitação ou dependente de drogas lícitas para controlar qualquer síndrome de abstinência, não tive reações colaterais de qualquer natureza; simplesmente fui liberto, curado do vício, da dependência na qual vivia há anos por meio de um reequilíbrio entre o material e o espiritual. Quem não conhece alguém que teve a mesma experiência? É observável, só não se sabe como, do ponto de vista médico.

Assim, fazem bem as ciências médicas e mesmo as corporações experimentar um aprofundamento nas questões espirituais. Como disse David Sloan, até mesmo o ateu tem condições de experimentar a espiritualidade em suas mais diversas relações, seja com a família, com as amizades, com a natureza, com as artes.

É evidente que, como cristãos, indicaríamos a espiritualidade baseada ou a partir dos pressupostos bíblicos. Mas como o tema é a espiritualidade (e não espiritualidade cristã, somente) que pode aliar-se à ciência médica na busca por cura e melhoria na qualidade de vida das pessoas, não podemos dogmatizar e condicionar a legitimidade dessa experiência ao raio de ação da instituição religiosa cristã. Até porque seria uma franca heresia entender que o cristianismo detém os direitos de uso do exercício da espiritualidade ou que tenha patenteado as doses e a fórmula para a cura que advém da experiência mística.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Espiritualidade em busca de sujeitos


Quero comentar dois textos que podem ser chamados de síntese – cada um na sua respectiva área – do espírito distinto que rege ocidentais e orientais. O comércio do sagrado, do Pr. Dionísio Oliveira da Silva, é o retrato puro e simples da pragmática norte-americana. Embora não reflita com cem por cento de acerto a espiritualidade brasileira nem latino americana (ainda que parte dela), traz consigo a marca do sentimento popular, das ânsias e desejos, tanto dos americanos do sul quanto dos do norte.


Em determinados pontos do texto podemos identificar claramente o espírito malandro, o jeitinho, tão característicos do nosso povo, e também a própria idolatria tão característica de uma nação colonizada por católicos e amamentada por africanos, com suas práticas rituais. A caricatura que o autor faz da identificação da divindade com a mercadoria (no mercado) é a mais pura representação do rumo (e por que não dizer da práxis) que hoje algumas igrejas tem experimentado. Há quem vá dizer que isso é reflexo direto da importação da teologia dos EUA. Outros, por sua vez, dirão que é a precária cena social no nosso próprio continente que demanda esse tipo de busca, uma vez constatada a falência do Estado para dirimir questões que são (ou seriam) da sua esfera de responsabilidade. Ambos tem a sua parcela de razão.

No entanto, não podemos negar a culpa, por assim dizer, do sujeito, do negociante. As teologias e as espiritualidades não nascem por si; são elaboradas por alguém em função da sua relação com o outro (e muitas vezes até com a divindade!). Assim, o sujeito da ação é, ao menos em última análise, o responsável por esta demanda. Não houvesse interesse, busca, resposta, esse discurso materialista, pragmático, mercantilista não teria ecoado e se avolumado no cenário religioso, no terreno do sagrado, na esfera onde deveríamos encontrar refúgio para os cansados. Mas não, houve uma importação dos interesses pessoais para a mesa onde a ceia da comunhão com o espírito estava sendo celebrada. E o pão que deveria ser uma representação da presença de Deus passou a ser o objeto da adoração.

Já o outro texto, com a pauta oriental em suas construções, vai cumprir o papel que lhe cabe, qual seja, expressar a sensibilidade, a serenidade e a leveza do pensamento e comportamento orientais. Este, no entanto, tem um tempero mais agressivo que o habitual. A experiência religiosa e a meditação, de Jiddu Krishnamurti, trabalha a conceituação dos termos propostos no seu título (experiência religiosa e meditação), fazendo contrapontos com o que não é experiência religiosa e a compreensão do que é a meditação. Claramente vê-se aqui um ataque com luvas de pelica ao – e novamente ele – pragmatismo ocidental e ao espírito de urgência alimentado e cultivado por cada um de nós. Mais que isso, ataca-se toda e qualquer forma de religião, organização religiosa ou os “gurus”. Falha o autor, pois ao pretender apontar o caminho, qualquer que seja, faz-se ele mesmo de guru. O texto é pontuado de contradições em suas conceituações e contradições internas (uma afirmação contradiz outra logo em seguida).

Ele não quer lidar com a religião e ataca frontalmente o objeto da religião e da espiritualidade ocidental (Deus), afirmando que se trata de projeção da mente. Não é possível, segundo ele, conhecer nem experimentar a divindade, qualquer que seja, pois como podemos experimentar algo que não sabemos de antemão como é? Assim, segundo ele, fica comprometida também a própria experiência religiosa. Mas o que ele coloca no lugar de Deus em seu texto é o próprio homem, e o homem que medita. Medita como? Novamente ele ataca, e agora o seu próprio ninho, os gurus da meditação zen, meditação transcendental etc. Para o autor, são “vendedores de sistemas” e “sistemas mecanizam” o homem em vez e libertá-los.

Qual a saída? “Comprar o pacote” que ele vende e, com isso, vejo um ciclo vicioso do qual ele não sairá facilmente; não neste texto. Pois o que faz em seguida é oferecer o seu sistema, embora dando-lhe outro nome para “evitar” ser confundido com o que ataca. Não estou mergulhado na cultura oriental, mas pareceu-me ser a versão asiática da pragmática e do comércio do sagrado.

Para concluir, gostaria de apontar algo que achei muito proveitoso, quando trata do modo como lidar com a memória, com as experiências e os pensamentos. O autor vai propor um “olhar para fora”, para fora de si em busca do belo, do ideal. É possível, aqui, para o cristão, refletir sobre o próprio significado da ecclesia, que nada mais é do que “sair do meio” (no caso, o sistema judaico). Ao menos nas obras que tenho lido, pouco se fala sobre esse ponto (devo confessar que leio pouco sobre o assunto e quando o faço, leio autores ocidentais).

A proposta é, ainda, muito similar ao conceito de kenose cristão, o esvaziar-se de si mesmo, a exemplo do que faz Jesus e que Paulo narra em Filipenses 2.5-11. Talvez o que ficará da leitura desses textos são o alerta para a materialização exacerbada que ocorre no comércio do sagrado e essa questão que acabei de apontar, da necessidade de um esvaziamento dos próprios interesses, das próprias ganâncias tão nossas e que prejudicam não outros, mas a nós mesmos. A troca de experiências com os orientais deveria, sim, ter algo a ensinar.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Como esperamos a aurora?

A obra do historiador Jean Delumeau, À Espera da Aurora (2007, Loyola, 215pp.), é uma importante peça de análise e perspectivas sobre o Cristianismo, mormente o cristianismo Católico Romano.


Desse modo, é possível dividir a obra em duas partes, a primeira lançando um olhar retroativo nas questões, digamos, da sociologia da religião, comparando-o com outras cosmovisões e apontando certa “inocência” daquele em relação aos enganos destas.

A segunda parte Delumeau utiliza, após ter lançado o fundamento do seu edifício, para fazer uma leitura contemporânea sobre o diálogo inter-religioso e o faz do ponto de vista católico romano. Ele entende ser esta a instituição a responsável pela iniciativa de tal diálogo, uma vez que a vê como a majoritária instituição dentro do ambiente cristão. Mas não é apenas isso o que Delumeau pretende. Sua proposta é fundamentar o diálogo inter-religioso com vistas “à aurora”, a qual espera, e deve ser entendida como o novo limiar na comunidade religiosa global, quando as diferenças cúlticas serão mantidas cada qual no seu ambiente, mas o espaço público será marcado pela convergência de elementos comuns a todos os credos que se dispõem a uma convivência pacífica, de aprendizado mútuo e de troca de experiências. Nessa altura, ele pergunta, repercutindo a pergunta dos bispos em Lourdes, na França, em 2000: “Como anunciar o Evangelho hoje em dia?”

Delumeau, então, analisa o Cristianismo, primeiramente, em termos de números, e começa o seu texto citando pesquisas exaustivamente, todas elas executadas e levadas a cabo por órgãos do velho continente. É possível, a partir da leitura de tais pesquisas, notar (parafraseando Rubem Alves em Dogmatismo e Tolerância ou em Religião e Repressão) que as instituições estão em baixa, ao passo que a crença está em alta. Essa constatação é amparada pelo olhar evolucionista, quando deixa claro que somos (o Cristianismo) muito jovens.

É neste mesmo capítulo cuja tônica é apresentar números e a realidade – não considerada nas estatísticas – que os cristãos, à exemplo do que fez, também foram massacrados e martirizados. Não somente perseguiu (p. ex. na Inquisição), mas foi, notadamente no século XX, vítima de um programa de erradicação, num século quando a geração nada sabe a respeito do religioso cristão, mas demonstra, paradoxalmente (segundo as estatísticas), um crescimento do interesse em espiritualidade.

Em seguida, Delumeau, que já havia apontado o Cristianismo como responsável por grandes desenvolvimentos da humanidade, elabora um capítulo que se resume no seguinte: ciência e religião não devem excluir-se, mas ambas devem ficar maravilhadas diante da “obra da criação”. E esta obra, para a religião, aponta o Criador; para a ciência, aponta o belo. No entanto, Delumeau trata de colocar os devidos pontos a estes termos, quando fala da ciência e sua incapacidade de dar a palavra final. A cada descoberta, novos enigmas. A ética, por exemplo, não é simples alocamento químico-molecular. É transcendental, como em Dostoieviski (embora ele não cite o escritor russo). A palavra final é dada pela Bíblia e o fundamento da ética e da moral é Deus, e não o homem.

Na segunda metade do livro, Delumeau vai estreitando cada vez mais o seu foco para apontar, como já especifiquei no início dessa resenha, as questões do diálogo inter-religioso e este encabeçado pela igreja Católica. Cita vastamente frases e situações envolvendo Paulo VI e João Paulo II, suas viagens, concílios e documentos, com o claro intuito de demonstrar a existência de boa vontade por parte dessas lideranças – e também no arraial luterano e metodista – mas que é preciso fazer mais e fazer algo que retire do discurso e do papel e seja traduzido por ações e convivência que demonstre a eficiência de tais atitudes.

Gostaria de destacar dois pontos na obra de Delumeau, um positivo e outro negativo. O negativo é que, talvez por uma questão de “orgulho” nacionalista, o autor concentra suas leituras a fontes européias. As ocorrências de dados sobre a Ásia e América Latina não são dele, mas dessas mesmas fontes que – elas sim – preocuparam-se em dar um panorama mais abrangente do assunto tratado.

Delumeau peca com este “estreitamento”, pois ignora grandes trabalhos feitos, por exemplo, no Novo Mundo. Um caso bem conhecido, a obra de D. James Kennedy E se Jesus não tivesse nascido (2003, Ed. Vida), é imensamente mais abrangente (e faz isso num só capítulo, não em metade de sua obra!) quando cita as atrocidades cometidas por ideologias várias frente àquelas das quais os cristãos vez ou outra são acusados, como as Cruzadas e a Inquisição.

O Dr. Kennedy cita as mais de 40 milhões de pessoas mortas sob o regime de Stálin, o que Delumeau (embora Stalin seja do mesmo continente) ignora. O Dr. Kennedy aponta também, os seis milhões de judeus e “de nove a dez milhões de outras pessoas (na maioria cristãos)” que foram liquidados. E o que dizer de Mao Tsé Tung, com os mais de 70 milhões de chineses e mais dois milhões de pessoas de outras etnias?

O Dr. Kennedy chega até mesmo a fazer contas, somando as mortes ocorridas sob os regimes supra citados, adicionando aquelas ocorridas durante as guerras do século XX, e chega a um número aproximado de 130 milhões. “Usando os mais exagerados critérios e números não seria possível chegar a mais de 17 milhões de pessoas mortas por cristãos professos em nome de Jesus, em vinte séculos de história cristã” (p. 300, ênfase minha).

Do ponto de vista positivo, apreciei muito o capítulo 5 (A recusa da culpabilidade hereditária), no qual o autor resgata a origem da doutrina do pecado original e sua hereditariedade (ou, na expressão do autor, a solidariedade). A menos nas obras que tenho lido recentemente, pouco tem sido dito sobre o tema. Delumeau remonta tal doutrina a reflexões feitas por Agostinho e ampara sua afirmação dizendo que nem mesmo a “teologia” dos judeus considerava esse pecado. E mais, diz que “até o último quarto do século II a questão do pecado original permaneceu obscura nos textos dos Padres apostólicos” (p. 89).

Delumeau acusa a insistência na manutenção dessa doutrina a uma má interpretação da escolástica agostiniana. Não herdamos a culpa do pecado de Adão (ele cita Jesus e Ezequiel) mas os efeitos do mal “no mundo”. Chegamos aqui e o mal já estava instaurado. Neste sentido, justifica-se falar em “redenção”. É possível associar o dito de Delumeau ao de Huberto Rohden, quando antecipa que a “queda” não é negativa, antes, um impulso para o próprio desenvolvimento humano. Neste sentido, o que chamamos Queda pode ser o próprio “levantar-se”. Quem poderá suportar este discurso?

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Ele, a Vida


Ele, a vida é o título de um poema de Mouses. Quando leio João 5.39,40 lembro desse título: “Vocês estudam cuidadosamente as Escrituras, porque pensam que nelas vocês têm a vida eterna. E são as Escrituras que testemunham a meu respeito; contudo, vocês não querem vir a mim para terem vida.”


Com essas palavras, Jesus está dizendo várias coisas. Muito pode ser dito sobre estes dois versículos, mas certamente o mais importante, a verdade mais impressionante, o ensino mais marcante que se pode extrair da passagem reside no fato do encontro com Jesus. O eixo do texto é o próprio Jesus e um aspecto é patente: as Escrituras são importantes, é necessário estudá-la, mas elas não nos dão vida. Jesus está dizendo que as Escrituras são a placa de sinalização para Ele. Elas são as placas que indicam que Ele é o Caminho. Elas apontam para Ele, o Caminho; Ele, a Vida.

O erro dos fariseus dos dias de Jesus e dos nossos fariseus é esse: estudar as Escrituras, decorá-la, repeti-la, ensiná-la, mas nunca promover o encontro com Ele, a Vida. As Escrituras testemunham a respeito de Jesus, mas é preciso ir a Ele para termos vida. As Escrituras e o Cristianismo sinalizam que é preciso relacionar-se pessoalmente com Jesus para haver qualquer vestígio de mudança em nós, para que vivamos.

Sem relacionamento pessoal com a Vida, não há vida. Tudo o que fizermos sem a mais íntima e profunda comunhão pessoal com Jesus deve ser apontado como religioso no seu sentido mais negativo, pois é intelectualmente enganoso e não promove vida. Porque conhecer as Escrituras é um modo eficiente de fazer-nos sábios, como conhecer teologia é um modo eficiente de fazer-nos intelectuais, mas aqueles que querem algo mais intenso e duradouro precisam ter um encontro com Ele, a Vida.