sábado, 27 de outubro de 2012

O diabo do homem faz a Bíblia falar

"E viu a mulher que aquela árvore era boa para se comer, e agradável aos olhos, e árvore desejável para dar entendimento; tomou do seu fruto, e comeu, e deu também a seu marido, e ele comeu com ela". (Gênesis 3.6, ênfases minhas)

Todos conhecemos o relato da tentação. Nele lemos ter o diabo sugerido a Eva que o fruto proibido daria um conhecimento tal que não se tinha domínio. Deus, ainda segundo o diabo, omitiu conhecimento, poder e domínio que agora tinham o seu desvelamento tornados possíveis seguindo os rastros indicados pela serpente. Eva, então, viu, desejou e tomou para si o fruto, e o deu a seu marido. O conhecimento veio, mas não do modo como desejaram.
Quando era pastor em uma igreja aqui em São Paulo, durante a reunião com o grupo de jovens, um deles perguntou: "Pastor, por que a Bíblia não fala nada sobre grandes temas da humanidade?". Perguntei "Quais temas?". O jovem disse: "A construção das pirâmides, o advento de Hitler...".
A Bíblia, o texto sagrado dos cristãos, deveria ser usada somente para anunciar a salvação da alma. A mim parece ser este o eixo natural, o tema central já em Gênesis que segue até ao Apocalipse. O assunto da Bíblia é a salvação por causa da Queda descrita acima, e esta salvação é realizada em Jesus, que é amplamente anunciado em suas páginas.
Assim, o texto da Bíblia tem sua maior concentração nos assuntos pertinentes a salvação. Para o autor divino (Yahweh) e os autores humanos (sacerdotes, apóstolos, profetas e outros), a "humanidade" a quem a Bíblia se dirige, é a humanidade toda. A Bíblia registra grandes temas relativos à humanidade. Em outras palavras, todas as coisas necessárias ao conhecimento humano (eventos, histórias, pessoas, testemunhos etc.) e inerentemente relevantes ao universo religioso judaico-cristão, estabelecido e permanente há pelo menos seis mil anos, estão contidos na Bíblia.
No entanto, do Iluminismo para cá, a Bíblia tem sido atacada de todas as formas, usada indevidamente, acusada de todos os crimes, recusada por todas as declarações que faz. Mas ela está aí, aumentando a sua presença, sendo traduzida para novos idiomas e dialetos e sendo exportada para culturas que antes a rejeitavam.
Os ataques contra ela parecem não ameaçá-la: ninguém há que ofereça substituto ao modelo de salvação da alma humana como a Bíblia. Acusá-la de imprecisão científica? A Bíblia não é um livro de ciências; é um livro que trata da salvação, como disse. Ela tem erros nas informações geográficas? Seu assunto é a salvação. Há imprecisão historiográfica? Ela se ocupa da alma humana. Essas acusações não dizem respeito ao seu "negócio principal" e ela não faz concessões: seu foco é a salvação do pecador perdido.
Se o empenho do Iluminismo e da modernidade não afetaram a credibilidade da Bíblia, a outras correntes mais modernas ela parece ter envelhecido; sua proposta precisava de uma repaginada.
Com lentes inadequadas para enxergar as propostas anunciadas por seus autores supracitados, novas abordagens foram aplicadas na leitura do texto bíblico para "readequá-la" a mente moderna. Resumidamente, num continente impregnado pelo racionalismo cientificista, o programa de demitologização dos teólogos liberais não sobreviveu até aos nossos dias. Ela não abriu mão de suas histórias, ainda que parecessem míticas.
Já nos Estados Unidos, o próprio berço de ouro deu ocasião a aplicação de uma abordagem capitalista e consumista, para que ela falasse a linguagem do mercado; e foi criada a pobre Teologia da Prosperidade (e da saúde do corpo).1
Na América Latina, quando a massa pobre era a regra no continente, uma leitura libertária da Biblia (ou ao menos de alguns textos específicos), deu ocasião, primeiramente no seio da Igreja Católica e mais recentemente no meio evangélico, a Teologia da Libertação. Quiseram que a Bíblia declarasse sua opção pelos pobres, já que eram muitos. Quando conjunturas econômicas mais favoráveis avançaram, os evangélicos importaram dos Estados Unidos o que havia sobrado da Teologia da Prosperidade, seduzindo-a a prometer vida mansa, tal qual um gênio da lâmpada.
E assim a Bíblia tem sido sequestrada e usada. No cativeiro da cultura onde ela é feita refém, quem se aproxima dela com concepções ou conveniências próprias usam-na para fazê-la falar o que querem ouvir, o que é agradável aos olhos e o que é desejável entender. Tal qual o diabo fez, toda tentativa de fazer ou usar a Bíblia para uma finalidade estranha ao seu sentido particular, é uma tentativa diabólica.
Ela, no entanto, sobreviverá a cada um de nós preservando em suas páginas a mensagem para a qual foi planejada e escrita. E que bom que tem sido assim, que ela viva por si, até mesmo sem essa minha defesa.

1 Health and Wealth Gospel (Evangelho da Saúde e Prosperidade), Faith Movement (Movimento de Fé), Faith Prosperity Doctrines (Doutrinas da Fé e Prosperidade) ou Positive Confession (Confissão Positiva).

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Fala, que eu te escuto


O comportamento de muitos cristãos de hoje não endossa a fé que dizem sustentar. Aspectos que regem a prática cristã são encontrados, evidentemente, na Bíblia, e orientam atitudes simples e primárias como falar.

Um cristão pode se notabilizar pelos conhecimentos que tem, mas pode colocar tudo a perder se não moderar o seu vocabulário. Esse risco é previsto no Antigo e no Novo Testamento, mas como insinuei acima, muitos dos indicadores primários da fé cristã têm sido deixados para trás e substituídos por rotinas e expedientes das pessoas que não têm qualquer compromisso com a fé em Jesus Cristo.

Num texto clássico sobre o tema, Jesus advertiu: “Mas eu lhes digo que qualquer que se irar contra seu irmão estará sujeito a julgamento. Também, qualquer que disser a seu irmão: ‘Racá’, será levado ao tribunal. E qualquer que disser: ‘Louco!’, corre o risco de ir para o fogo do inferno” (Mateus 5.22). Essa orientação não caducou. Então vejamos o seu sentido. Jesus escolheu o termo grego Γακά (raká). Não sabemos o que ele significa, mas uma pesquisa nos ensina que raká, para os falantes daquela época, era um termo abusivo. Entre os seus significados mais prováveis estão: tolo, cabeça-oca ou mesmo burro.

Na sequência do versículo lemos “louco”. Aqui Jesus empregou o termo Μώρέ (Môré), outra palavra que pode ser traduzida por tolo, insípido ou insensato; considere que os cristãos são advertidos por Jesus a que sejam o contrário de insípido: sejam sal, e não insípidos.

Noutro documento do Novo Testamento, Efésios 4.29, Paulo diz: “Nenhuma palavra torpe saia da boca de vocês, mas apenas a que for útil para edificar os outros, conforme a necessidade, para que conceda graça aos que a ouvem”. Torpe é a tradução de σαπρός (saprós). Figurativamente ela transmite a ideia de mau, ruim, imprestável. No contexto de Mateus 7.17, onde Jesus fala dos frutos da árvore, ela significa podre.

E finalmente em Colossenses 3.8, a expressão “... abandonem todas estas coisas: ira, indignação, maldade, maledicência e linguagem indecente no falar.” Essa “linguagem indecente” é a tradução de αισκρολογιαν (aiskrologian), uma junção de duas palavras para formar o que naqueles tempos era entendido por palavra indecente, obcenidade ou mesmo fala abusiva. Esta é a única passagem no Novo Testamento onde aparece aiskrologian.

Que devemos entender aqui? Que embora estejamos imersos numa sociedade que não zela pelo modo mais decente de expressar-se, que não faz qualquer esforço para ser gentil, educada e mesmo decente no uso da fala, essa tendência natural das pessoas que não professam a mesma fé que nós não pode engolir o nosso modo correto de falar, de agir e de nos mostrarmos na mesma sociedade. Chamar irmãos de “trouxas”, “imbecis” e “otários”, como vemos até mesmo em programas de televisão, não passa perto de qualquer padrão saudável no cristianismo bíblico. A inteligência do cristão deverá elaborar argumentos suficientemente fortes ao ponto de dispensar o uso de expressões chulas e vocabulário que possa ser equiparado a dos mais desprezíveis pecadores.

Para muitos isso parece difícil; mas seguramente é possível. Talvez seja esse o motivo porque Tiago dedicou boa parte de sua epístola (Tg 3.1-12), e mesmo o livro de Provérbios, a tratar da questão. O menor membro do corpo derruba a mais consagrada celebridade, mas o exercício persistente poderá ajudar a cada um de nós na eliminação de outros vícios que atrapalham o aprofundamento da mais simples espiritualidade.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Nada novo debaixo do sol

A barriga dita as decisões da cabeça

Das histórias que o Antigo Testamento conta, lemos sobre a tomada e conquista hebreia da Terra Prometida. Tomada? Conquista? Não houve tomada nem conquista. Josué conduziu o povo no avanço da invasão, mas após a sua morte, os hebreus, vindos do deserto, “acomodaram-se” entre os povos que lá estavam, sem luta armada nem confronto, como o Salmo 44.1-8 leva a crer.

A tarefa ficou inacabada por décadas e foi registrada em textos como Juízes 1.27-34. Aos poucos os hebreus ocuparam as terras e apropriaram-se da lavoura e dos rebanhos dos povos estabelecidos. Fizeram alianças com uns e submeteram outros à escravidão.

Todos precisavam comer, adultos e crianças, hebreus e cananeus. Os hebreus ignoravam o funcionamento da agricultura, pois no Egito trabalharam em olarias e a jovem geração que entrou em Canaã havia nascido no deserto, onde nada se planta e nada se colhe. Os cananeus, que ocupavam o território, conheciam os métodos agrícolas e confiavam a fartura na colheita aos deuses da terra. Os hebreus, então, logo se curvaram a Baal, deus da fertilidade, encarregado de enviar chuva, tão essencial a agricultura.

Isso é o pragmatismo, faz-se o que funciona, o que é necessário “agora”. E para isso, vale até mesmo celebrar alianças condenadas por Yahweh, o Deus dos hebreus. Em nome das necessidades básicas prementes, a traição ao estatuto recebido por Moisés no Sinai encontra justificativa: os fins justificam os meios. O ideário da nação sacerdotal não enche barriga e não paga as contas; então, viola-se a aliança de sangue que os unia àquele que os removeu escravos e os tornaria senhores da terra.

O resultado, quem leu o livro dos Juízes já conhece. A vida espiritual do povo tornou-se uma roda gigante: ora no céu, ora no limbo. Os altares e sítios idólatras foram os para-raios da assolação que não falhou, resultado previsto nos decretos que o próprio povo concordou em chancelar ainda no deserto. Ora, não conheciam a norma dita por Deus? “Sim, mas precisavam comer”, dirão alguns.

Num bate-papo com um pastor amigo, falando sobre ideologia partidária nas eleições e sobre como o povo não leva em conta os termos que regem cada partido, meu interlocutor, amigo, defendeu o povo que vota no candidato “que faz pelos pobres”. Não importa a ideologia assumida pelo candidato: é preciso saciar a fome acima de tudo. Refletindo sobre esta sua fala, não demorei a lembrar dessa época quando os hebreus, colocando suas necessidades acima da ideologia pagã, assumiram um compromisso que os levaria a uma era de trevas.

A experiência seria repetida séculos mais tarde, no período dos reis de Israel, e o Senhor enviaria profetas para reclamar a falta de conhecimento do povo como razão da própria ruína (Isaias 1.3 e outros). Tudo em nome do utilitarismo e do pragmatismo: é preciso comer, mas isso pode justificar tudo? O Diabo também pode servir pão, mas Jesus advertiu que “nem só de pão viverá o homem” (Mateus 4.4). Há valores que aos cristãos devem considerar inegociáveis.

Se a necessidade o pressiona, se a aparência do novo o atrai, cuidado: não há nada novo debaixo do sol. Nem mesmo o erro de envolver a si, a família, a cidade e a nação numa aliança que viola princípios bíblicos básicos e a ideologia do próprio Cristianismo. Se esse texto reflete o debate eleitoral? Sim. Se estou procurando induzir a um partido específico? Gostaria, mas se o leitor levar em conta a reflexão acima nas suas próximas escolhas importantes, já terei sido recompensado.

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