quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Teologia e conquista na América Latina

O caminho por onde a teologia faz suas demarcações na América Latina confunde-se com certos aspectos sociais e econômicos da época. É possível dizer que são as demandas econômicas européias que estenderão o pano de fundo para um cenário pretensamente religioso, o que no dizer do autor de Percurso Teológico na América Latina (Wanderley Pereira Rosa) é a chamada “legitimação teológica da dominação”. Clóvis Bulcão(1), por exemplo, expõe a expansão mercantil da Coroa portuguesa no século XVI a motivações que remontam a interpretação teológica de Antonio Vieira(2), que dão conta que o quinto império de que fala Daniel é a própria nação. Eduardo Galeano(3) aponta o dedo para a desenfreada gana espanhola que escraviza, explora e destrói culturas e até mesmo civilizações, chegando ao ponto de empregar sábios de determinados grupos étnicos na extração de minérios.


Fato é que por traz do impulso evangelístico há as demandas mercantis europeias que farão uso da religião como instrumento de fala e aproximação com os povos nativos. Mas essa fala é estrangeira e consequentemente incompreensível ao povo da terra, que, ao manter sua cultura e seus ritos, são demonizados e vistos como selvagens pelos representantes da “nova cultura”.

A afirmação de que “a imposição do modo de vida europeu era um grande favor a ser feito aos nativos” e que “eles deveriam ficar agradecidos”, a meu ver deve ser vista com reticência, diante da constatação que, nos anos1950/60, “intelectuais latino-americanos estavam (...) com um dos olhos postos na mensagem dos evangelhos e o outro na realidade sócio-econômica do povo pobre e oprimido”. Concordo que houve grande contribuição, progresso e avanços, mas questiono se a imposição não é um mecanismo pelo qual lutamos ainda hoje dentro do ambiente onde a teologia em si procura estabelecer diálogo com a cultura local e as demandas da região.

Esse método imperialista de dominação, de legitimação teológica da conquista, descaracterização da tribo e imposição de uma cultura estrangeira, e mesmo a ocupação e mudança de moradia como meio de apagar a história do outro é, a meu ver, a repetição em partes da experiência hebreia no Egito, só que de modo invertido, pois o Egito foi invadido, ao passo que Portugal invadiu.

No entanto, não há como escapar à pergunta: Haveria outro meio pelo qual a experiência evangélica pudesse ocorrer entre os nativos? A conquista da hegemonia marítima pela Inglaterra veio abrir as portas para uma segunda conquista, a dos protestantes. Estes aportam num solo onde a iniciação ao cristianismo já havia ocorrido, ainda que com contornos teológicos distintos e até certo ponto sincréticos pela ótica protestante. Surge, então, outra questão: A catequização feita pelos portugueses não teria sido o preparo do solo para o lançar da semente protestante, esta iniciada com o protestantismo de missão feito por alemães e ingleses? Será que, na ausência de um trabalho romanista, a tal “imposição do modo de vida europeu” não tivesse que ser feita pelos missionários após 1810, com o Tratado de Aliança e Amizade? Essa avaliação não caberá aqui.

A experiência dos novos missionários se dá de modo a aproximar o povo e o bojo de suas experiências, cultura e valores ao projeto de Deus para eles. O que é pregado não é a extirpação (por imposição), mas a acomodação da experiência humana aos moldes do evangelho, como já havia ocorrido na colonização parcial dos EUA pelos calvinistas, por exemplo. No longo prazo a conta foi cobrada em forma de uma teologia da riqueza, da saúde e do bem estar, como vimos da década de 1980 para cá. E o que é possível falar sobre isso? Muito.

Romeiro(4), em sua tese de doutoramento, constata que após uma década de teologia da prosperidade e promessas que não podem ser cumpridas (porque o Evangelho não as fez), esse movimento já produz seus primeiros “decepcionados”. Após anos ouvindo promessas que nunca se concretizaram, os ouvintes desaminaram-se e, desiludidos, deixaram as igrejas com tal perfil e migraram para outras com teologia mais sólida, outros partiram para uma experiência que nega o institucional e, pior que isso, alguns abriram mão até mesmo do cristianismo.

Fica, portanto, a sensação de que o Evangelho deve tratar essencialmente do homem, cuidar do seu coração e aproximá-lo do Senhor dos Evangelhos. A utilização das boas novas para quaisquer outros fins tenderá a um desvirtuamento nocivo, tornando insípida a experiência que daí advir. Diante disso, o percurso teológico na América Latina, a meu ver, ainda lembra os primeiros versículos do texto de Gênesis: um caos sobre o qual paira o Espírito criador de Deus, e que só aos poucos vai sendo ordenado.

1. BULCÃO, Clóvis, Padre Antonio Vieira, um esboço biográfico. São Paulo: José Olympio Editora, 2008.

2. Vieira opõe-se a Inquisição, em Portugal e no Brasil, pois entende que os judeus têm condições de financiar a expansão marítima de Portugal e, com isso, fazer cumprir seu projeto pessoal de implantação do Quinto Império português.
3. GALEANO, EDUARDO. As veias abertas da América Latina, São Paulo: Paz e Terra, 36ª ed., 1994.
4. ROMEIRO, Paulo. Decepcionados com a graça. São Paulo: Ed. Mundo Cristão, 2008. O título da obra é um trocadilho com a Igreja Internacional da Graça de Deus, denominação alvo da pesquisa do autor.

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