segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Ecumenismo e diálogo inter-religioso

A questão do desenvolvimento de uma cultura do ecumenismo e do estabelecimento do diálogo inter-religioso esbarra em alguns entraves. Dentre os mais conhecidos está a alegada ameaça à centralidade de Cristo. Esse ponto é, já, questionado no âmbito do ecumenismo entre grupos ditos cristãos; que dirá quando avança sobre campos onde a adoração e culto se prestam a deuses “outros”!


A pergunta que se coloca, ao menos nos lábios cristãos mais ortodoxos é: – É possível o diálogo? E se sim, em que base? Esse é o ponto discutido de forma segura em A Reconciliação Cósmica e o Diálogo Inter-religioso, do Prof. Julio Zabatiero, a partir de reflexões em Colossenses 1.15-20.

O texto aos colossenses, um hino cristológico, provavelmente incorporado por Paulo a sua epístola, descreve a obra redentora do Salvador por meio de uma metáfora cuja utilização e aplicação tem sido muito escassa nos meios cristãos. A reconciliação promovida pela redenção se dá pelo “ministério da reconciliação” e pela “palavra da reconciliação” (2Co 5.18,19), a qual se torna a expressão da “vocação do povo de Deus (...) em Cristo”. Cristo reconcilia em si todas as coisas, pessoas, poderes e a própria criação. Portanto, uma igreja cristocêntrica há de observar “nele” a sua própria vocação e cumpri-la, e isso pelo exercício da reconciliação.

O primeiro ponto estudado pelo autor trata da estrutura do hino, o qual está dividido em duas estrofes. A primeira (vv. 15-17) apontando para a ação de Deus em Cristo na criação e a segunda (vv. 18-20) na reconciliação. E o que Deus reconcilia em Cristo? Todas as coisas: toda a criação; todas as coisas nos céus e na terra; todas as coisas que foram criadas por Ele, pois somente nele tudo subsiste; e isso com a finalidade de que tudo tenha a supremacia, uma vez que em Cristo habita toda a plenitude a fim de que ele reconcilie todas as coisas. São destaques que o próprio texto dá por meio dessas palavras e que o autor enfatiza a fim de fundar o seu argumento, qual seja, que a redenção de Cristo é ampla ou deve ser estendida àqueles ou àquilo que não está tão próximo.

Definidos os (amplos) limites do alcance da redenção (1), o autor passa a destacar a mensagem do hino. As lentes da exegese latino-americana o fazem ver (justificadamente) o “caráter político da linguagem do hino”, o que tem sido notado também por autores “norte-atlânticos”. Esses termos de natureza política estão “vinculados à linguagem da diplomacia e da ideologia do Império Romano”. E que termos são esses? Exatamente os termos que equivocadamente são tomados pelas interpretações dualísticas, espiritualísticas e místicas ao longo do tempo: principados e potestades. Pela lente da exegese em questão, a relação dos termos está ligada aos poderes terrenos e celestiais, respectivamente, ao contrário da comum interpretação que os liga a qualquer entidade de natureza espiritual ou demoníaca.

É nessa base onde o autor entende ser possível a percepção do viés inter-religioso do discurso paulino no hino. A humanidade está dividida em compartimentos étnicos, culturais, políticos e religiosos e cabe à Igreja a promoção da reconciliação dessa humanidade dividida, separada. E, parafraseando Moisés, no anúncio da reconciliação a igreja dirá que “quem a está enviando para esta tarefa?”. A resposta é Jesus Cristo.

A Igreja é (e aqui entra outra metáfora) o Corpo, cuja cabeça é Cristo, meio pelo qual a reconciliação é (e somente dessa forma) realizada. Que outro personagem, que outro tema, que outra ideologia, que outro elemento Deus propôs para que a reconciliação pudesse ser efetivada? Nenhum outro nome debaixo do céu. No passado “a própria Lei de Deus se tornou o principal obstáculo à unidade humana”, mas na plenitude dos tempos a “supremacia de Cristo na nova criação” que restaura a unidade humana é a resposta de Deus àqueles que questionam “a fidelidade de Deus ao seu projeto original”, e isso se dá em tons escatológicos. É “uma nova humanidade em Cristo Jesus, criada ‘segundo Deus na justiça e na santidade que vem da verdade’ (Ef 4.24)”. É preciso, no entanto, destacar aqui o termo humanidade, uma vez que essa humanidade é o fruto da reconciliação promovida em Cristo. A reconciliação em Cristo não cria uma nova “religião mundial, mas uma humanidade re-unificada” (p. 6). Esse é o ponto que satisfaz e responde a pergunta do segundo parágrafo, sobre em que bases se dará o diálogo.

A partir da reconciliação da humanidade ou da criação em Cristo Jesus de uma nova humanidade, se dará a proposta de reconciliação dos poderes. Pessoas formam o poder e não o contrário. É preciso, portanto, tratar as causas (pessoas) para curar as consequências (as estruturas). E aqui temos, nova e inevitavelmente, as lentes da exegese latino-americana, quiçá a quarta lente da história da teologia cristã. (2)

Para explicar o modo como são alcançados os poderes que necessitam reconciliação, o Prof. Zabatieiro aponta a necessidade de despir as cascas (camadas, na linguagem dele) que equivocam a compreensão do que seja o objeto, de fato, da reconciliação. Quer Deus reconciliar a Igreja ou as denominações? Quer Deus reconciliar a Cristandade? Ou a reconciliação se dará no aspecto da espiritualidade? O que é reconciliado na ação redentora de Cristo?

Esse tem sido um “fator inevitável de tensão” no diálogo inter-religioso: a afirmação do senhorio único de Jesus Cristo. Mas essa é a base das declarações paulinas, já que o projeto de Deus contempla esse, e não outro, modelo. Assim, o primeiro poder apontado pelo autor é o eclesiástico. É urgente a necessidade de invalidar a afirmação “de que fora da igreja não há salvação”. “As igrejas são apenas instrumentos do reinado de Deus, e não o próprio reinado! O alvo e o critério da missão são o crescimento do senhorio de Cristo, e não o da igreja”. Nada mais claro e explícito do que essas palavras. Elas sintetizam uma verdade que as declarações eclesiológicas ocultam por tanto tempo e lança luz à compreensão da originalidade do projeto de Deus já na criação (tema subjacente ao hino).

A segunda casca a “ser removida é a da identificação do Cristo com a Cristandade”, entendendo cristandade como a instituição eclesiástica aliada aos poderes políticos. Nada disso! E que evidências temos para fazer tal afirmação? Cornélio (At 10.4,31), que não está na Igreja mas é incluído (reconciliado) pelo próprio Deus, por seu ato e vontade soberana, na Igreja. E com base em que faz isso? Na premissa de que a Igreja é constituída por pessoas e não por modelos e processos, e na sua ciência de que o que as pessoas são ligadas ao Corpo pela fé e o que fazem (suas obras) mantêm-nas unidas ao Corpo e justificam sua permanência ali.

Terceiro, afaste-se da idéia de que a espiritualidade e a ética ocidentais são os paradigmas autoritativos e mantenedores da reconciliação. Nada do que foi elaborado ou desenvolvido pelas culturas (ainda que por séculos ou milênios) pode ser a chancela da manifestação interventiva do Cristo. Certamente a nossa cultura e a nossa ética necessitam ser redimidas. O autor acrescenta, ainda, o nível da reconciliação ecológica, e deve ter em mente o âmbito da criação (reflexo de sua teologia calvinista... e isso não é crítica). Aqui temos novamente uma questão de cidadania. A responsabilidade sobre a reconciliação da criação é tarefa cristã, porque o cristão entende a intervenção divina no processo. No entanto, essa compreensão também se dá no não-cristão, porque Deus escreveu em seu coração a lei moral. Assim, quando ele promove a manutenção da ecologia e da sustentabilidade, o faz por ser igualmente obra da criação de Deus, e assim o faz como cidadão. A sociabilização, o respeito, a moralidade, o desejo pelo sagrado, todos são aspectos inerentes ao ser humano enquanto cidadão.

Nesse ponto, o autor indica a consequência da ação reconciliadora em Cristo, que é a evangelização. Teríamos excluído a evangelização por meio dos quatro atos listados anteriormente? De forma alguma, somente não o fizemos por vias do que ele chama “evangelização imposta”, mas “evangelização inculturada” (essas expressões são de Stephen B. Bevans & Roger P. Schrorder, in Constants in context). Battista Soares trata largamente desse modelo evangelístico em seu livro A igreja cidadã (3), onde apresenta projetos de melhoria da qualidade de vida em comunidades carentes, notadamente no Maranhão. Por meio de projetos de captação de recursos para implementação de culturas auto sustentáveis, a Igreja melhora a qualidade de vida das pessoas e a apresentação do evangelho toma novo impulso e nova aparência e atrativos, para não falar da eficácia na sua transmissão.

Esse tema também é encontrado em Lutero, quando trata da tríplice diaconia. A diaconia elementar, vivida na família e no trabalho remunerado; a diaconia da Igreja, realizada no treinamento e aprendizado da fé para unidade fraternal cristã e em sentido criacional e, por último, a diaconia política, voltada à comunidade civil (no combate à miséria, fome, carência da população).

Em outras palavras, é nesse sentido que o texto de Julio Zabatiero caminha. “Do ponto de vista do diálogo inter-religioso, a paz de Cristo exige uma comunidade plenamente cônscia da sua identidade transformada e transformadora”. Em que direção? Ao estabelecimento, não de uma “igreja mundial”, como disse em outro trecho, mas do Reino de Deus, que comporta, dentre outras coisas, a própria Igreja, que é uma das ferramentas a serem usadas no estabelecimento daquele.

Concluindo, parafraseando um texto meu usado em outro contexto, se a igreja fizesse “o dever de casa”, muitos planos do Governo (p. ex. o Fome Zero) teriam sido implantados pela Igreja para ter apoio do Governo, e não o contrário. É sobre isso que Lutero falava, foi isso o que Calvino elaborou magistralmente, e esse também é o sentido que o diálogo inter-religioso, apoiado na reconciliação que há em Cristo pretende fazer-se ouvir. Essa é, oportunamente, a indicação dada por Tiago sobre a verdadeira religião, aquela que cuida do próximo em sentido fraternal, “despido dos uniformes e cosméticos denominacionais” (para usar uma antiga expressão de Caio Fábio) que visam mais a auto-promoção que o amor em sentido missionário.

(1) Na verdade, a ordem de interpretação do texto não se presta a essa afirmação que faço, mas tais “limites” estão visíveis em todo o texto do hino. O texto está dividido em estrofes e não em unidades que indicam alcance, linguagem, mensagem etc.
(2) Sendo a primeira a lente judaica, no nascedouro, as lentes filosóficas quando o Cristianismo vai para a Europa, as lentes pragmáticas quando chega aos Estados Unidos e as lentes político-sociológicas ou mesmo libertacionistas na América Latina.
(3) Soarez, Batistta. A Igreja cidadã. São Paulo: Arte Editorial, 2007.

Nenhum comentário:

Postar um comentário