sexta-feira, 16 de julho de 2010

Como esperamos a aurora?

A obra do historiador Jean Delumeau, À Espera da Aurora (2007, Loyola, 215pp.), é uma importante peça de análise e perspectivas sobre o Cristianismo, mormente o cristianismo Católico Romano.


Desse modo, é possível dividir a obra em duas partes, a primeira lançando um olhar retroativo nas questões, digamos, da sociologia da religião, comparando-o com outras cosmovisões e apontando certa “inocência” daquele em relação aos enganos destas.

A segunda parte Delumeau utiliza, após ter lançado o fundamento do seu edifício, para fazer uma leitura contemporânea sobre o diálogo inter-religioso e o faz do ponto de vista católico romano. Ele entende ser esta a instituição a responsável pela iniciativa de tal diálogo, uma vez que a vê como a majoritária instituição dentro do ambiente cristão. Mas não é apenas isso o que Delumeau pretende. Sua proposta é fundamentar o diálogo inter-religioso com vistas “à aurora”, a qual espera, e deve ser entendida como o novo limiar na comunidade religiosa global, quando as diferenças cúlticas serão mantidas cada qual no seu ambiente, mas o espaço público será marcado pela convergência de elementos comuns a todos os credos que se dispõem a uma convivência pacífica, de aprendizado mútuo e de troca de experiências. Nessa altura, ele pergunta, repercutindo a pergunta dos bispos em Lourdes, na França, em 2000: “Como anunciar o Evangelho hoje em dia?”

Delumeau, então, analisa o Cristianismo, primeiramente, em termos de números, e começa o seu texto citando pesquisas exaustivamente, todas elas executadas e levadas a cabo por órgãos do velho continente. É possível, a partir da leitura de tais pesquisas, notar (parafraseando Rubem Alves em Dogmatismo e Tolerância ou em Religião e Repressão) que as instituições estão em baixa, ao passo que a crença está em alta. Essa constatação é amparada pelo olhar evolucionista, quando deixa claro que somos (o Cristianismo) muito jovens.

É neste mesmo capítulo cuja tônica é apresentar números e a realidade – não considerada nas estatísticas – que os cristãos, à exemplo do que fez, também foram massacrados e martirizados. Não somente perseguiu (p. ex. na Inquisição), mas foi, notadamente no século XX, vítima de um programa de erradicação, num século quando a geração nada sabe a respeito do religioso cristão, mas demonstra, paradoxalmente (segundo as estatísticas), um crescimento do interesse em espiritualidade.

Em seguida, Delumeau, que já havia apontado o Cristianismo como responsável por grandes desenvolvimentos da humanidade, elabora um capítulo que se resume no seguinte: ciência e religião não devem excluir-se, mas ambas devem ficar maravilhadas diante da “obra da criação”. E esta obra, para a religião, aponta o Criador; para a ciência, aponta o belo. No entanto, Delumeau trata de colocar os devidos pontos a estes termos, quando fala da ciência e sua incapacidade de dar a palavra final. A cada descoberta, novos enigmas. A ética, por exemplo, não é simples alocamento químico-molecular. É transcendental, como em Dostoieviski (embora ele não cite o escritor russo). A palavra final é dada pela Bíblia e o fundamento da ética e da moral é Deus, e não o homem.

Na segunda metade do livro, Delumeau vai estreitando cada vez mais o seu foco para apontar, como já especifiquei no início dessa resenha, as questões do diálogo inter-religioso e este encabeçado pela igreja Católica. Cita vastamente frases e situações envolvendo Paulo VI e João Paulo II, suas viagens, concílios e documentos, com o claro intuito de demonstrar a existência de boa vontade por parte dessas lideranças – e também no arraial luterano e metodista – mas que é preciso fazer mais e fazer algo que retire do discurso e do papel e seja traduzido por ações e convivência que demonstre a eficiência de tais atitudes.

Gostaria de destacar dois pontos na obra de Delumeau, um positivo e outro negativo. O negativo é que, talvez por uma questão de “orgulho” nacionalista, o autor concentra suas leituras a fontes européias. As ocorrências de dados sobre a Ásia e América Latina não são dele, mas dessas mesmas fontes que – elas sim – preocuparam-se em dar um panorama mais abrangente do assunto tratado.

Delumeau peca com este “estreitamento”, pois ignora grandes trabalhos feitos, por exemplo, no Novo Mundo. Um caso bem conhecido, a obra de D. James Kennedy E se Jesus não tivesse nascido (2003, Ed. Vida), é imensamente mais abrangente (e faz isso num só capítulo, não em metade de sua obra!) quando cita as atrocidades cometidas por ideologias várias frente àquelas das quais os cristãos vez ou outra são acusados, como as Cruzadas e a Inquisição.

O Dr. Kennedy cita as mais de 40 milhões de pessoas mortas sob o regime de Stálin, o que Delumeau (embora Stalin seja do mesmo continente) ignora. O Dr. Kennedy aponta também, os seis milhões de judeus e “de nove a dez milhões de outras pessoas (na maioria cristãos)” que foram liquidados. E o que dizer de Mao Tsé Tung, com os mais de 70 milhões de chineses e mais dois milhões de pessoas de outras etnias?

O Dr. Kennedy chega até mesmo a fazer contas, somando as mortes ocorridas sob os regimes supra citados, adicionando aquelas ocorridas durante as guerras do século XX, e chega a um número aproximado de 130 milhões. “Usando os mais exagerados critérios e números não seria possível chegar a mais de 17 milhões de pessoas mortas por cristãos professos em nome de Jesus, em vinte séculos de história cristã” (p. 300, ênfase minha).

Do ponto de vista positivo, apreciei muito o capítulo 5 (A recusa da culpabilidade hereditária), no qual o autor resgata a origem da doutrina do pecado original e sua hereditariedade (ou, na expressão do autor, a solidariedade). A menos nas obras que tenho lido recentemente, pouco tem sido dito sobre o tema. Delumeau remonta tal doutrina a reflexões feitas por Agostinho e ampara sua afirmação dizendo que nem mesmo a “teologia” dos judeus considerava esse pecado. E mais, diz que “até o último quarto do século II a questão do pecado original permaneceu obscura nos textos dos Padres apostólicos” (p. 89).

Delumeau acusa a insistência na manutenção dessa doutrina a uma má interpretação da escolástica agostiniana. Não herdamos a culpa do pecado de Adão (ele cita Jesus e Ezequiel) mas os efeitos do mal “no mundo”. Chegamos aqui e o mal já estava instaurado. Neste sentido, justifica-se falar em “redenção”. É possível associar o dito de Delumeau ao de Huberto Rohden, quando antecipa que a “queda” não é negativa, antes, um impulso para o próprio desenvolvimento humano. Neste sentido, o que chamamos Queda pode ser o próprio “levantar-se”. Quem poderá suportar este discurso?

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