Foi Teodoro Beza, biógrafo de João Calvino, quem deu início a certas ênfases na doutrina de Calvino, ênfases essas que o próprio biografado não pretendia dar. Nascia aí o calvinismo que Calvino não ensinou. Justiça seja feita, nem todo o calvinismo deve ser rejeitado, pois trata-se de um excelente programa de reforma de toda a sociedade e não somente da igreja. Entretanto, alguns dos chamados Cinco Pontos do Calvinismo(1)parecem, até mesmo para um calvinista como Norman Geisler, interpretações imprecisas e absurdas do que a Bíblia ensina. Geisler critica abertamente R. C. Sproul, um dos maiores escritores e defensores da doutrina calvinista, demonstrando falácias e contradições em alguns de seus pensamentos e textos.
Há muito o que escrever sobre questões como essas; eu não seria ingênuo a ponto de pretender propor uma revisão do modo como certos grupos reformados lidam com as questões do dia-a-dia da fé. Mas, como dito no início do capítulo, o ponto de partida, em torno do qual proponho a discussão, é o modo como lidamos com o conhecimento herdado – pela tradição e pela Escritura – e a aplicação que fazemos dessa herança, ao conduzirmos pessoas a Cristo e levá-las ao discipulado e à disciplina, com vistas ao crescimento e amadurecimento na fé e na cidadania.
Tenho questões que gostaria que alguém respondesse. Se para os cristãos a Bíblia é a única e última autoridade em matéria de fé e verdade, e uma vez que é possível encontrar nela as principais declarações elaboradas nos Credos que a igreja produziu, por que então não usarmos pura e simplesmente a Bíblia no ensino aos cristãos? Em que, por exemplo, um texto como o de Colossenses 1.15-20 fica devendo diante de um Credo Apostólico ou um Credo Niceno?
Um dos postulados ou slogans da Reforma, formulado por Gilbertus Voetius (1589-1676), é Ecclesia reformata et semper reformanda est, que pode ser traduzido por A Igreja é reformada e está sempre se reformando. Esse princípio, segundo a proposta reformacionista, deveria ser encarado à luz de outra reivindicação: sola scriptura (só a Escritura). Esse sola, que surgiu em oposição à força da tradição romana imposta sobre cada aspecto da vida do cristão, advogava que o alvo era sempre o de promover um retorno às Escrituras.(2) Os reformadores não queriam uma igreja que estivesse sempre mudando, mas sempre se reformando, uma vez que reformar implicava retorno ao texto bíblico, o que promovia um ciclo de pureza a cada leitura e reordenamento da prática do ensino bíblico.
Ao considerar que há diversas passagens bíblicas com declarações posteriormente exploradas nos documentos da Igreja, não estou aqui atacando e repudiando documento algum, principalmente depois de vermos sua necessidade em momentos decisivos da história. Mas há que se dizer que os mesmos precisam ser colocados em seus devidos lugares, em função de uma convergência para ou exaltação da Palavra de Deus. Ela é absoluta, bem como a verdade encontrada em suas páginas. Ela é viva!
(...) o fato de a Bíblia ser nossa autoridade suprema é que nos dá liberdade de retornar às Escrituras e redescobrir verdades, que foram obscurecidas pela tradição e pelos costumes, em relação à igreja. Uma das razões que muitos crentes temem mudanças e defendem as tradições da igreja local é porque suspeitam que a mudança os leva para longe da verdade mais que em direção a ela. (3)
A Bíblia não é um livro de receitas, é um documento único da revelação divina (ênfase minha). (4)
Os perdidos que admitem a necessidade de serem salvos (os eleitos?) não querem saber o que cremos ou o que temos a dizer sobre Deus; eles querem saber o que Deus está dizendo para eles e quais são as boas novas de Deus para o perdido. Da mesma forma, os problemas enfrentados pela Igreja, em determinados momentos da história, devem ser tratados à luz da compreensão reformada pela Escritura. Outros autores também têm notado e escrito sobre a tendência à rigidez provocada pela adoção e “reverência” de documentos históricos em denominações que se guiam por eles.
O projeto para uma comunidade cristã dinâmica é a Palavra de Deus. Embora se deva apreciar as interpretações culturais, tradicionais e denominacionais da Igreja, todas as formas da Igreja de Cristo devem, em suma, sujeitar-se às Escrituras, caso contrário elas, em sua caminhada ao sabor do vento, deixarão, cada vez mais, de ser cristãs. (5)
Não pode haver dúvida de que, mais do que nunca, é preciso nos expormos ao texto bíblico, permitindo que o Senhor fale por meio dele. Por mais sérios que sejam os demais documentos, por mais piedosos que tenham sido seus autores, a Palavra de Deus é nossa regra única de fé. Mesmo irmãos de dentro dos círculos reformados têm identificado grupos que se excedem na defesa dos Credos e das Confissões.
Enquanto escrevia este capítulo, conversei sobre isso com um pastor amigo meu, militante na igreja Reformada. Ele lamentou ver que alguns de seus pares são capazes de conversar por uma hora inteira, citando vários trechos das Confissões, se citar uma única vez a qualquer versículo da Bíblia. Creio que essa não seja a posição dominante a Igreja, mas é um vício a ser combatido.
Certamente, só a exposição diante das Sagradas Escrituras poderá dar respostas seguras para a condução da Igreja na chamada pós-modernidade. Ainda que um Credo ou Confissão funcione como sumário daquilo que Deus diz em sua Palavra, é preciso admitir que muitos casos assemelham-se a alguns apóstolos que impediam as crianças festivas de se achegarem a Cristo. Os apóstolos estão no Caminho, mas é preciso deixar as crianças irem a Cristo.
** Extraído do livro É Cristã a Igreja Evangélica?, publicado pela Arte Editorial
1 Os cinco pontos são: depravação total, eleição incondicional, expiação limitada, graça irresistível e perseverança dos santos.
2 Sempre reformando ou sempre deformando? Augustus Nicodemus, in Servos Ordenados. São Paulo: Ed.Cultura Cristã, ano 3, no. 11, out-dez/2006, p. 19.
3 HORRELL, op. cit., p. 156.
4 Barth. Op. cit., p. 120.
5 Horrell. Op. cit., p. 94.
Excelente texto! Nos trás à reflexão quanto a importância que temos dado à Palavra.
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