Ainda que possa ser mal interpretado
por alguns leitores, quero fazer uma tentativa de corrigir um equívoco antes
que se torne erro histórico. Diante dos últimos acontecimentos envolvendo a
bancada evangélica no Congresso, ou parte dela, e mesmo o posicionamento de
alguns cristãos sobre as questões que envolvem a sexualidade de quem quer que
seja, no último dia 26 ouvi a parte final de uma entrevista dada pelo
cartunista Laerte ao jornalista Marcelo Tas, o primeiro um homoafetivo assumido
e o segundo seguindo a mesma trilha. Na parte entrevista que ouvi, Laerte repetiu
o bordão de que os crentes querem privatizar o sagrado, privando “os outros” do
acesso a Deus – como se Deus fosse objeto da propriedade de poucos em
detrimento de muitos. Ele concluiu dizendo que evangélicos são um malefício a
sociedade, “gente nefasta” foram suas palavras, para ser rigorosamente honesto.
A espiritualidade é uma
característica inerente do ser humano. Todos, sem exceção, são dotados dessa capacidade,
até mesmo aqueles que se dizem ateus. Está na alma do sujeito e de lá não sai.
Sendo assim – como de fato é – todas as pessoas que se sentem inclinadas ao
transcendente irão querer buscá-lo, e toda ação, manifestação, reflexão, reza,
leitura, ou seja lá o que for, é chamado espiritualidade. Cada grupo, povo,
cultura ou pessoa pode desenvolver sua própria maneira de expressar e
desenvolver a espiritualidade. E é bom que o façam, como também é saudável até
mesmo para o corpo físico. Há estudos acadêmicos sobre isso.
Do outro lado há a religião. A
religião é o modo como determinados grupos que professam a mesma fé e a
organizam dentro dos moldes concebidos ou admitidos por eles mesmos. Variações podem
ocorrer dentro de uma mesma tradição em função de influência cultural, regional
e até mesmo econômica.
A religião, por ser mais organizada que
a espiritualidade, deve seguir uma tradição que normalmente parte de um texto,
de um rito específico, de um mito. Vem de longe a sua fundação, ao menos na
maioria das tradições religiosas. O Cristianismo, por exemplo, toma a tradição
judaica, que nos tempos de Jesus contava cerca de dois mil anos, e avança para
uma reorganização segundo a interpretação dada por Jesus. Assim, o Cristianismo
resgata textos do Antigo Testamento e produz nova tradição a partir desses
textos, inicialmente registrada nos escritos do Novo Testamento.
Quando ouço homoafetivos acusando
cristãos de quererem privatizar a religião, logo imagino o desconhecimento
gerador de uma afirmação como essa. Pastores, padres, evangelistas ou quem quer
que represente algum ramo da tradição cristã, católica ou protestante (ou
outra), está apenas procurando reproduzir a organização daquela religião
específica. A privação do acesso a Deus não cabe a ser humano algum, porque não
está no âmbito da religião privar acessos, mas no espaço da espiritualidade.
Não cabe a qualquer líder religioso
interferir na espiritualidade individual de quem quer que seja. Já o
ensinamento religioso sobre determinada tradição sim, e para isso há um código
produzido na fundação de cada tradição, que regula o modelo a se reproduzido
pela religião. E o ensino sobre uma tradição religiosa deve contemplar também
orientações sobre aquela espiritualidade. Assim, pessoalmente não acredito que
uma tradição religiosa deva se abrir para práticas que não são contempladas por
sua tradição. Do contrário, imagine um religioso interferindo no modo como a
comunidade LGBT deve se comportar! Não faz sentido, embora a comunidade LGBT em
tempos recentes não esteja respeitando o espaço destinado a manifestação do
culto evangélico, numa atitude bastante reprovável.
Penso que um grupo que queira iniciar
práticas rejeitadas ou mesmo reprovadas por uma tradição religiosa deva começar
sua própria tradição, sua própria religião, sem interferir em algo que já está
estabelecido e consolidado. Não são pastores, deputados evangélicos, padres,
bispos, apóstolos que impedirão alguém de desenvolver sua espiritualidade, mas
dentro de um grupo religioso, qualquer que seja, quem preserva a ortodoxia e a
prática adequada deve ser respeitado, porque até isso é previsto por lei. E se
alguém entende que uns são mais “ajustados” aos novos tempos do que outros,
deveriam ao menos mostrar respeito como ponto inicial numa relação humana e
apropriada a que pretendem fazer crer.