sexta-feira, 28 de junho de 2013

Sobre espiritualidade, religiosidade, gays e religiosos


Ainda que possa ser mal interpretado por alguns leitores, quero fazer uma tentativa de corrigir um equívoco antes que se torne erro histórico. Diante dos últimos acontecimentos envolvendo a bancada evangélica no Congresso, ou parte dela, e mesmo o posicionamento de alguns cristãos sobre as questões que envolvem a sexualidade de quem quer que seja, no último dia 26 ouvi a parte final de uma entrevista dada pelo cartunista Laerte ao jornalista Marcelo Tas, o primeiro um homoafetivo assumido e o segundo seguindo a mesma trilha. Na parte entrevista que ouvi, Laerte repetiu o bordão de que os crentes querem privatizar o sagrado, privando “os outros” do acesso a Deus – como se Deus fosse objeto da propriedade de poucos em detrimento de muitos. Ele concluiu dizendo que evangélicos são um malefício a sociedade, “gente nefasta” foram suas palavras, para ser rigorosamente honesto.

A espiritualidade é uma característica inerente do ser humano. Todos, sem exceção, são dotados dessa capacidade, até mesmo aqueles que se dizem ateus. Está na alma do sujeito e de lá não sai. Sendo assim – como de fato é – todas as pessoas que se sentem inclinadas ao transcendente irão querer buscá-lo, e toda ação, manifestação, reflexão, reza, leitura, ou seja lá o que for, é chamado espiritualidade. Cada grupo, povo, cultura ou pessoa pode desenvolver sua própria maneira de expressar e desenvolver a espiritualidade. E é bom que o façam, como também é saudável até mesmo para o corpo físico. Há estudos acadêmicos sobre isso.

Do outro lado há a religião. A religião é o modo como determinados grupos que professam a mesma fé e a organizam dentro dos moldes concebidos ou admitidos por eles mesmos. Variações podem ocorrer dentro de uma mesma tradição em função de influência cultural, regional e até mesmo econômica.

A religião, por ser mais organizada que a espiritualidade, deve seguir uma tradição que normalmente parte de um texto, de um rito específico, de um mito. Vem de longe a sua fundação, ao menos na maioria das tradições religiosas. O Cristianismo, por exemplo, toma a tradição judaica, que nos tempos de Jesus contava cerca de dois mil anos, e avança para uma reorganização segundo a interpretação dada por Jesus. Assim, o Cristianismo resgata textos do Antigo Testamento e produz nova tradição a partir desses textos, inicialmente registrada nos escritos do Novo Testamento.

Quando ouço homoafetivos acusando cristãos de quererem privatizar a religião, logo imagino o desconhecimento gerador de uma afirmação como essa. Pastores, padres, evangelistas ou quem quer que represente algum ramo da tradição cristã, católica ou protestante (ou outra), está apenas procurando reproduzir a organização daquela religião específica. A privação do acesso a Deus não cabe a ser humano algum, porque não está no âmbito da religião privar acessos, mas no espaço da espiritualidade.

Não cabe a qualquer líder religioso interferir na espiritualidade individual de quem quer que seja. Já o ensinamento religioso sobre determinada tradição sim, e para isso há um código produzido na fundação de cada tradição, que regula o modelo a se reproduzido pela religião. E o ensino sobre uma tradição religiosa deve contemplar também orientações sobre aquela espiritualidade. Assim, pessoalmente não acredito que uma tradição religiosa deva se abrir para práticas que não são contempladas por sua tradição. Do contrário, imagine um religioso interferindo no modo como a comunidade LGBT deve se comportar! Não faz sentido, embora a comunidade LGBT em tempos recentes não esteja respeitando o espaço destinado a manifestação do culto evangélico, numa atitude bastante reprovável.

Penso que um grupo que queira iniciar práticas rejeitadas ou mesmo reprovadas por uma tradição religiosa deva começar sua própria tradição, sua própria religião, sem interferir em algo que já está estabelecido e consolidado. Não são pastores, deputados evangélicos, padres, bispos, apóstolos que impedirão alguém de desenvolver sua espiritualidade, mas dentro de um grupo religioso, qualquer que seja, quem preserva a ortodoxia e a prática adequada deve ser respeitado, porque até isso é previsto por lei. E se alguém entende que uns são mais “ajustados” aos novos tempos do que outros, deveriam ao menos mostrar respeito como ponto inicial numa relação humana e apropriada a que pretendem fazer crer.

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Que tipo de “submissão às autoridades” Paulo ensinou?


Em decorrência das recentes manifestações nas ruas do país e nas redes sociais, alguns cristãos têm sido confrontados por seus pastores e irmãos quando tomam posição contrária aos Governos federal, estadual e municipal. O mote usado é o texto no qual o apóstolo Paulo recomendou “submissão às autoridades”, em Romanos 13.1: “Todos devem sujeitar-se às autoridades do governo, pois não há autoridade que não venha de Deus, e as que existem foram ordenadas por ele.”. Quero refletir, ainda que de maneira incompleta, sobre a questão.

Evidentemente este texto tem sido interpretado de modos distintos. Até onde vai o limite do Governo, “da autoridade”? Paulo submeteu-se cegamente a esses poderes?

Veja que dois versículos depois o texto dá a resposta mais imediata à questão quando diz sob que aspecto a submissão é requerida: “Porque os governantes não são motivo de temor para os que fazem o bem, mas sim para os que fazem o mal.” (v. 3) O papel da autoridade é colocar em vigor a justiça, a Lei e a ordem. O v. 4 diz isso explicitamente: “Porque ela [a autoridade] é serva de Deus para o teu bem. Mas, se fizeres o mal, teme, pois não é sem razão que ela traz a espada, pois é serva de Deus e agente de punição de ira contra quem pratica o mal.”. A “espada” é entendida como a própria pena de morte por alguns intérpretes, mas outros alegam ser a punição com maior rigor, enfim.

Mas, e quando o Governo pratica desmandos, quando é comprovado ilicitudes em sua gestão? E quando há injustiça por parte das mesmas autoridades? O mesmo Paulo, quando foi julgado por crime que não cometeu, não se submeteu, antes, apelou a Cesar (Atos 25.11). Ele desrespeitou seu próprio mandamento? Claro que não. Houve grande mobilização em função de sua apelação; um destacamento militar foi colocado à disposição do apóstolo, uma longa viagem teve de ser feita, ele ficou dois anos sob custódia do Império, tudo isso porque não aceitou as disposições legais contrárias a verdade a seu respeito.

Recentemente reli o livro de Ester, o qual mostra uma trama de morte contra o povo de Deus no Império Medo-persa. O que fizeram os judeus? Organizaram-se, jejuaram, mas manifestaram-se perante o rei. Ester enfrentou uma disposição real correndo risco de morte, uma vez que era proibido aproximar-se do rei sem a sua expressa autorização. No final, ela alcançou justiça e livramento para o seu povo.

No Brasil democrático temos uma situação distinta, pois que a democracia supõe o governo pelo povo e para o povo (em grego, democracia significa poder do povo). Obviamente o povo não governará, mas elegerá especialista para tal finalidade. Dentro do governo democrático, os mecanismos legais (lícitos) são os mecanismos políticos e as manifestações são direitos do povo (não confundindo com atos de vandalismo e violência).

Todo cristão é chamado a buscar a justiça, a igualdade, a paz, os recursos básicos para a sobrevivência do próximo (estou pensando em moradia, alimentação, saúde, segurança, educação etc.). E não somente para cristãos, mas para todo o povo. O próprio Jesus disse que Deus dá sol e chuva para justos e injustos (Mt 5.45), lembrando que “sol e chuva” afetavam diretamente a economia daquele povo, cuja base cultural eram a agricultura e a pecuária.

William Wilberforce (1759-1833), cristão e parlamentar britânico, no seu tempo, empreendeu luta árdua por grandes reformas sociais. Enfrentou incompreensões, calúnias, tentativa de desmoralização e desmobilização, reação dos poderosos e dos privilegiados, mas perseverou. Ele disse que “Deus Todo-poderoso colocou diante de mim dois assuntos: a abolição do comércio de escravos e a reforma dos costumes na Inglaterra”. Por toda a sua vida ele lutou por isso em sua carreira política. Se hoje a maioria das nações ocidentais oficialmente não tem escravidão, é porque ele lutou contra esse modelo. E não sejamos ingênuos em pensar que não houve reações dentro e fora da própria igreja. O comércio escravo mobilizava boa parte da economia, e quando “tocamos” no bolso dos ricos, nada acontece pacificamente.

O mesmo podemos dizer do pastor batista Martin Luther King Jr. (1929-1968), conhecido ativista político que mobilizou os Estados Unidos em favor dos direitos dos negros. E nós brasileiros do século 21 não podemos cometer a ingenuidade de pensar que Luther King tivesse dito: “Olha, por favor, vamos acabar com a segregação. Coitado dos negros. Vamos ajudá-los”. Não houve avanço algum sem que houvesse resistência. E a submissão às autoridades? Eram elas mesmas que segregavam, movidas por interesses culturais e econômicos – e até mesmo religiosos por parte de cristãos que usavam versículos bíblicos para defender suas posições, mas que por outro lado esmagavam os afrodescendentes.

Que dizer do pastor Dietrich Bonhoeffer, na Alemanha de Hitler, envolvido na operação Valquíria, que tramou a morte do ditador? Hoje contamos com alegria a sua história, mas onde fica a submissão às autoridades na vida de um pastor envolvido num caso como esses?

É preciso levar a questão também para o campo da ética, que busca o maior bem para o maior número de pessoas. Quando temos, hoje, igreja evangélica brasileira, diante de nós a oportunidade de exercer a cidadania pelos meios legais e lícitos da manifestação pacífica, seja nas ruas, seja nas redes sociais, não estamos transgredindo leis e desobedecendo a Bíblia. Antes, estamos buscando a justiça tal qual Jesus orientou (Mateus 5.6 e outros), um país melhor com distribuição de renda e oportunidade para todos, e não um modelo que privilegia os desvios de verbas e outros crimes comprovadamente demonstrados pelas investigações.
Entendo o temor que certos pastores e irmãos têm de desobedecer a Deus em função do poder secular, mas não é exatamente isso o que a história nos mostra em relação à participação do cristão na vida do seu país. Não podemos exigir que todos se envolvam, uma vez que nem todos refletem sobre as Escrituras com a mesma compreensão e nem todos têm vocação para assuntos dessa natureza, que claramente não é dos mais atraentes. Política não é para todos, como também o pastorado, o cuidado dos doentes, o envolvimento no ensino, etc. Mas o esforço e o envolvimento pela justiça e pela paz é. Cada um fique, portanto, na vocação em que foi chamado.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Quem são os fracos do cristianismo?

O estatuto acadêmico estabelece limites dentro dos quais cada pesquisador deve limitar o seu trabalho: história, filosofia, psicologia, sociologia, antropologia entre outras. Mas parece que quando o assunto é religião, impera o ditado "é a casa da mãe Joana"; qualquer um entende um pouco.
Ouvi a uma palestra da filósofa e poeta Viviane Mosé. Ela é bem conhecida na mídia e tornou-se bem popular após uma série que apresentou pelo Fantástico. Hoje participa de um quadro diário na rádio CBN-SP.
Pois Viviane falava sobre o pensamento do filósofo alemão F. Nietzche (1844-1900), quando, ao responder a uma pergunta sobre cristianismo, derrapou em pista sem curva:

"Dos fracos e oprimidos é o reino dos céus, dos aleijados, dos pobres de espírito. Se é mais fácil passar um camelo no fundo de uma agulha [do que entrar um rico nos céus], nós devemos ser pobres, fracos, tristes e aleijados".

Com algum esforço é possível rastrear a fonte dessa conclusão infeliz da filósofa, uma vez que ela deu resposta generalizante destacando uma especificidade, isto é, uma particularidade do cristianismo. Toda a influência da tradição judaico-cristã resultou em pessoas com as características acima? Não, absolutamente. É possível encontrar esses traços dentro de algumas seitas cristãs, em parte do catolicismo e do protestantismo pentecostal clássico. Ponto final.
As denominações históricas não produziram cristãos assim; o calvinismo menos ainda. Se incluirmos os neopentecostais, a fala dela fica ainda mais herética.
Mosé comparava o vigor do pensamento de Nietzche em estimular que o homem científico, movido pelas luzes da razão, em contraste com a fraqueza que a tradição judaico-cristã gera nos crentes. Mas que fraqueza é essa? Sua denúncia procede?
Os aleijados que encontraram-se com Jesus foram curados; sabemos isso, basta ler os Evangelhos. É uma indicação de que a condição deficiente não é desejável no cristianismo. Parte das curas realizadas por Jesus foram realizadas por vontade dele; parte, pela fé do necessitado, fé que o levou não somente a uma ação e movimento em direção a Deus, mas também trouxe a este indivíduo nova condição (algo que Nietzche cria surgir por outras vias. Como não sou filósofo, não vou me entrometer).
Jesus nunca disse que o Reino dos céus é dos tristes. Não sabemos de onde Mosé tirou essa conclusão. O que mais se aproxima dessa fala seria, a meu ver, "Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados" (Mateus 5.4),  um paradoxo como muitos outros encontrados nos Evangelhos. Há muitos motivos pelos quais se pode chorar.
O choro não é condição sine qua non do cristianismo. Paulo mesmo escreveu uma carta aos Filipenses conhecida como "a carta da alegria". Ele estava na prisão em Roma e incentivava os crentes na cidade de Filipos a alegrarem-se sempre e em toda a situação. Paulo era apóstolo de Jesus e, assim, não contradizia o seu Salvador.
Pode-se chorar por motivos vários: econômicos, sociais, políticos, filosóficos, inclusive. E se você precisa de consolo, a ciência chamada psicologia pode ajudá-lo. Portanto, chorar não é demérito, antes, próprio da natureza humana e cristãos [e ateus] são humanos e devem chorar.
Mosé ainda disse que a tradição judaico-cristã incentiva a sermos fracos e pobres, e em seguida encenou caricaturas de evangélicos em tal situação. Aqui ela equivocou-se seriamente. É preciso entender em que consiste a fraqueza e a pobreza com as quais o cristianismo coteja e, para isso, é preciso um pouco de conhecimento dos mecanismos da teologia, aparato que a filósofa não dispõe.
A fala de Jesus registrada por Mateus é: "Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus" (Mateus 5.3). Ela quis mostrar que Nietzche é superior em sua filosofia, pois Nietzche pregava que o homem deveria ser super-homem (do alemão ubermenshe). O homem com pensamento científico, racional, independe de Deus, da revelação e do milagre e cria, ele mesmo, o seu próprio destino. O homem se basta.
Jesus, ao contrário do que se pensa, não aplaude os espiritualmente fracos, antes, àqueles que erguem-se em atitude de fé e rompem com a sua natureza pecadora. Mas isso não é feito por fracos, pelo contrário, os fracos encontram força na fé no Filho de Deus e, por meio do espírito, abrem mão voluntariamente, livremente, despojadamente de seguir o curso e a ditadura das filosofias vigentes (no caso de Nietzche, o início da modernidade era a filosofia vigente).
A fala original de Jesus registrada por Mateus em grego é hoi makariói tó ptokói to pneumati, que quer dizer, felizes os pobres pelo [ou por meio de] espírito (to pneumati admite tradução "por meio de"). Assim, assumir a fraqueza odeão pobreza ou qualquer outra condição assumida por um crente é frutífera quando ele tira forças "pelo" ou "por meio do" espírito, e isso ele faz voluntariamente; é iniciativa sua, já que Jesus não o obriga a isso. É, portanto, atitude de gente forte, não fraca, uma vez que tal decisão o levará a renunciar o curso e padrões correntes, exigirá maior disposição e persistência frente a corrente contrária. Não há como chamar fraco e pobre alguém assim.
Se eu dissesse que Nietzche foi leitura de cabeceira de Hitler, não estaria errado, pois dizem que o conceito de ubermenshe (super-homem) inspirou o ditador ás barbáries que cometeu. Mas seria desonesto se eu tirasse essa informação do contexto da obra daquele filósofo e fizesse dela um cavalo de batalha. Também seria desonesto dizer o que alguns filósofos escondem, que Nietzche, o homem que criou o super-homem racional e científico, morreu num hospício. O que deu errado na experiência dele? Não é da minha conta.
O que sei é que os fracos, tristes, aleijados e pobres sustentam o cristianismo por dois mil anos, com todas as suas ambiguidades e paradoxos, e isso fazem incansavelmente.

sábado, 29 de dezembro de 2012

AUTORIDADE É PARA OS FRACOS - 2

O último texto sobre "autoridade" não me satisfez. Escrevi pouco sobre o que queria, de fato, enfatizar. Por isso a necessidade de avançar, insistir no tema.
Vejo a rarefação do cristianismo nessa sanha por autoridade como há na Igreja. Algumas delas, é bem verdade. Vejo muito pouco a Jesus e sobram perfis de líderes corporativos nas palestras; nem dá para chamar de pregação ou sermão a um discurso que destoa do que foi ensinado pelo Mestre da Galileia.
Jesus disse para termos autoridade sobre demônios e pecados. Os mestres modernos e pós-modermos ignoram isso, mas falam em autoridade sobre pessoas, equipes e líderes. Lembram mais a gerentes de venda de Consórcio Remaza querendo motivar equipes do que homens santos apontando o caminho para uma vida de desapego. Cansam.
De repente um batalhão de crentes avança orientado pelo desejo de liderar. Qierem liderar o mundo enquanto não resolvem a vida de um cônjuge e um parzinho de filhos. Não se fala outra coisa. Gostaria de voltar a ouvir sobre o fruto do espírito ("amor, gozo, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fé, mansidão, temperança", Gálatas 5.22) e como desenvolvê-los. Mas agora não dá, porque parte da Igreja está pautada pela agenda de valores estranhos ao Evangelho. O resultado são palestras ensinando religiosos a serem bons mundanos. "Bons" é por minha conta: religiosos orientados por valores mundanos não são maus religiosos nem bons mundanos. São fracos.
Quem são os fortes, então? Fortes não são os que se deixam levar pela inércia popular. Não se faz força para chegar ao erro e ao pecado: basta deixar-se levar. Pare de resistir e logo está lambuzado da sujeira: ela é o padrão do mundo.
É preciso esforçar-se - isso sim - fazer força para produzir valores legítimos, equalizados aos valores que encontramos na vida de homens e mulheres de fé. E é bom lembrar que fé em nada se parece com auto-sugestão nem com confissão positiva nem com autoajuda.
É preciso nos esforçarmo por virtudes e valores que privilegiem a vida pessoal modificada pelas boas Novas e pelos direitos do vizinho. É muito estranha essa preleção que ensina a conquistar o mundo lá fora e o nivelamento dos bons (seleção natural aplicada à sociedade), mesmo que para isso a família seja desintegrada e os direitos do meu semelhante sejam desconstruídos porque alguém se imagina "filho do rei".
Nada mais pobre do que essa prosperidade secular e poucas coisas são tão anticristãs como algumas mensagens ouvidas em certas igrejas.

AUTORIDADE É PARA OS FRACOS

Poucos temas despertam tanta atenção de evangélicos como a autoridade. Livros são escritos, congressos são realizados, DVDs são distribuídos, tudo com a finalidade de ensinar uma parcela de cristãos interessados a reconhecer, desenvolver e exercer sua autoridade nos mundos espiritual e físico.
Se você navegar pela TimeLine do Twitter de alguns pastores ou palestrantes, verá com que facilidade elaboram frases de efeito sobre autoridade. Vá a uma boa livraria evangélica e em cinco minutos você verá alguém que não consegue cuidar da própria vida, mas está inebriado pelo canto da sereia desse modismo, à procura de material sobre como se tornar um líder em umas poucas lições (lições dadas, muitas vezes, por gente que nada sabe sobre o tema; é bom que se diga).
Como conciliar esta tendência com a orientação dada por Jesus em Mateus 20? Vejamos o texto:

"Então Jesus, chamando-os para junto de si, disse: Bem sabeis que pelos príncipes dos gentios são estes dominados, e que os grandes exercem autoridade sobre eles. Não será assim entre vós; mas todo aquele que quiser entre vós fazer-se grande seja vosso serviçal".

Tenho grande dificuldade em enfatizar certas passagens da Bíblia em detrimento de outras; isso é desonestidade, em primeiro lugar. Está claro que a procura e o desejo de possuir autoridade espiritual é um desvio flagrante e equivocado do espírito do Evangelho, do espírito cristão. O desejo de ter autoridade, como a vemos estimulado na Igreja, é uma tentativa de igualar-se ao sistema vigente, a cultura corrompida e ao padrão de comportamentos humanos, contra os quais cristãos cuidadosos deveriam exercer sua influência, caso tivessem sido influenciados por Jesus e por suas palavras. Isso não ocorreu. Esses cristãos não conhecem as palavras de Jesus nem gastam tempo com ele a fim de serem influenciados.
Há umas décadas, parte dos cristãos entenderam que era preciso aproximar-se das pessoas de fora da Igreja para poder apresentar-lhes o Evangelho. Mas entenderam que também era preciso mostrar que a Igreja tinha algum atrativo: músicas com os mesmos ritmos, reuniões com a mesma dinâmica e... comportamento e linguagem semelhantes. O sistema e a cultura permaneceram corrompidos como sempre foram, mas a Igreja, ao baixar a guarda para legitimar e expandir seu discurso, permitiu que a influência de fora entrasse pela porta da frente, e os cristãos estenderam palmas e cantaram: "Hosana! Somos atraentes e parecidos!".
Não parou aí. Aqueles que foram atraídos para dentro a Igreja, como não viram diferença entre lá e cá, demonstaram pouca disposição em manifestar sinais mínimos de mudança comportamental: não houve conversão, mas convencimento. Por seu lado, alguns cristãos que "abriram suas mentes" para a aproximação, passado algum tempo deixaram de buscar almas e contentaram-se repartir os despojos, isto é, aquilo que trouxeram de fora: ambição, egoísmo, individualismo, sede de poder, empenho por autoridade, necessidade de auto-afirmação e uma gama de defeitos e vícios os quais não precisávamos em hipótese alguma.
As virtudes que percebo como essenciais e que marcaram toda a história da Igreja, as mesmas que grandes religiões perseguem, foram abandonadas por esta parcela da Igreja; hoje fazem parte de um museu da história dos fracos. Humildade, serviço, mansidão, submissão, amor, longanimidade, paciência, prudência. Quem quer isso? Quem quer ser conhecido por essas qualidades?
Jesus não enganou os cristãos durante toda a trajetória da Igreja nos últimos dois mil anos. O Evangelho não foi reeditado; ele é o mesmo desde o primeiro século. Desse modo, todo aquele que procura ler e entender a Bíblia como um todo orgânico e unificado, que não deturpa o sentido original das Escrituras e tem se aproximado de Jesus com reverência, colocando-se no lugar do discípulo diante do Mestre perceberá facilmente que a autoridade apregoada em nossos dias é para os fracos. Cristãos que cuidam de sua espiritualidade não são encantados pela sedução de viver conforme o modelo caído e em estado de putrefação, modelo perverso e enganador da cultura vigente. Há cristãos boquiabertos diante da possibilidade de serem poderosos, reconhecidos, autoridades nacionais (ainda que, repito, não entendam bem o que é isso).
Não quero essa autoridade ilegítima, condenada e denunciada por Jesus, contrária ao Evangelho e essencialmente anticristã. Procuro e busco o modelo deixado pelo Senhor e insisto em fazer dele o meu modo de vida. Esforço-me por ser servo; autoridade é para os fracos.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Onde está Deus na violência de São Paulo?

Moro em São Paulo há mais de quarenta anos. A recente onda de violência na cidade de São Paulo, na Grande São Paulo e nas demais grandes cidades do país não é recente. É bom que fique claro, desde o início, que todos os dias, há décadas, morrem pessoas na cidade. Houve tempos nos quais foram registrados picos de violência. Há pouco tempo a cidade vizinha Diadema ficou conhecida como uma das cidades mais violentas do mundo. Após pressão (internacional, inclusive), o poder público interveio e hoje o quadro naquela cidade é bastante diferente.
Fora o registro histórico, há outro dado lamentável: a pressão e o aproveitamento político da situação. Esse é pior, porque não importam as vítimas civis e as baixas nos quadros da polícia (até hoje 92 policiais mortos em 2012): importa manchar a imagem do atual Governante, do atual Prefeito, dos atuais gestores. O interesse político, somado ao papel da imprensa (de serviço ou desserviço público), manipulam uma população desinformada e com baixíssimo (senão inexistente) senso crítico para avaliar dados e informações.
Mas neste breve artigo vou destacar outro agente, ou ausência dele, na atual situação. Falo de Deus. Antes, no entanto, quero voltar vinte e poucos anos no tempo, quando eu ainda era um dependente químico, usuário de drogas na cidade. Dos quinze aos vinte e quatro anos de idade (antes de tornar-me cristão em 1991) usei drogas, leves e pesadas, em casa de conhecidos e em público. Quando fazia em público, éramos eventualmente surpreendidos quando uma viatura fazia as regulares rondas. Ao vermos uma viatura, jogávamos bem longe o que tivesse à mão, temendo o que a polícia faria, pois seguramente ela faria algo com bastante rigor.
Recordo que algumas vezes saíamos de carro, e ficávamos circulando pela Marginal do Tietê de ponta a ponta, indo e voltando, fazendo uso de drogas, por falta de um lugar para ficar. A intenção era despistar a polícia. Mas se houvesse uma blitz (ou comando, como chamamos hoje), era um pânico só!
Bem diferente a situação de hoje. Usuários e bandidos hoje recebem a polícia à bala. Respondem grosseiramente quando são abordados, dão socos, são violentos. Quanta diferença!
Se você perguntar a que atribuo isso, tenho uma resposta na ponta da língua: faltou aos pais de hoje ensinar aos seus filhos, ontem, sobre Deus, em casa. Eu aprendi, desde os primeiros anos, a existência de uma hierarquia, imaginaria mas que funcionava: Deus, meus pais, os professores, meus amigos e eu. E hoje? Os amigos até importam, mas os professores têm sido agredidos nas escolas (particulares, inclusive). Os pais são ausentes, isso quando conseguem permanecer casados. E Deus? Deus não está na contabilidade da família de hoje e, portanto, não pode estar presente nem ser responsabilizado pela violência nossa de cada dia.
Eu vivi o dia a dia de violência na cidade de São Paulo, nas madrugadas, nas ruas, e a violência que vivi cessou ao encontrar-me com Jesus. E as pessoas de hoje? Deus não faz parte da rotina delas, em parte por negligência dos próprios cristãos. Deus não faz parte dos planos dos casais, nem da educação dos filhos, nem do cotidiano de grande parte da população. Foi isso o que a mentalidade desde o Iluminismo fez: pôs Deus para fora. O resultado foi esse que descrevi acima.
O que não foi percebido é que Deus permaneceu no seu lugar, onde sempre esteve. O homem fechou a porta, mas quem ficou para fora foi ele próprio. Para resolver o problema da "nossa violência", esse homem deverá bater à porta de Deus, voltar-se para ele e refazer a velha estrutura que estava funcionando bem, obrigado. E a ordem a ser restabelecida é: Deus, nossos pais, nossos mestres e nós... se sobrar alguém.

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segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Reconciliação: uma mensagem para hoje

Fundada por por Selêuco c. 300aC, Antioquia tornou-se a terceira maior cidade do Império Romano. Antioquia foi importante ponto e rota comercial e tornou-se um influente centro do pensamento teológico, tendo nomes como Inácio e João Crisóstomo como bispos.

Havia ali farta diversidade no campo do pensamento. Dentro os habitantes, contava-se mais judeus em Antioquia do que em toda Jerusalém. O judaísmo predominante na igreja em Jerusalém impedia o amplo florescimento do cristianismo; mas em Antioquia havia sinagogas nas quais foi possível estabelecer vínculos com a nova religião. Soma-se o helenismo e cultura grega naturais na cidade de Antioquia, o culto ao Imperador, os elementos do gnosticismo, religiões asiáticas, chalatanismo babilônico e o templo de Apolo: o desafio não era pequeno.

Curiosamente foi em Antioquia onde os discípulos de Jesus foram, “pela primeira vez, chamados cristãos” (At 11.26). E um dos segredos que vejo para que isso acontecesse reside na mensagem de reconciliação ensinada por Paulo.

Revertendo o que Noé predisse milhares de anos antes, o Espírito Santo estava reconciliando consigo o mundo, etnias e classes sociais antes separadas. Vemos a conversão do cananita etíope (At 8); do semita Saul (At 9) e do jafetita Cornélio (At 10). Em seguida, em Atos 11, não mais um indivíduo, mas uma igreja entende o sentido plural de sua missão.

Paulo fala de reconciliação em quatro textos ao longo de sua obra: em Romanos 11 (sobre Israel), em 2Corintios, Efésios e Colossenses.

Rm 11.15: “Pois se a rejeição deles é a reconciliação do mundo...”.

2Co 5.18-20: “Tudo isso provém de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo e nos deu o ministério da reconciliação, ou seja, que Deus em Cristo estava reconciliando consigo o mundo, não levando em conta os pecados dos homens, e nos confiou a mensagem [ou palavra] da reconciliação. Portanto, somos embaixadores de Cristo, como se Deus estivesse fazendo o seu apelo por nosso intermédio. Por amor a Cristo lhes suplicamos: Reconciliem-se com Deus.”

Ef 2.15,16: “[...] na sua carne desfez a inimizade [...] para criar em si mesmo dos dois um novo homem, fazendo a paz, e pela cruz reconciliar ambos com Deus em um corpo, matando com ela [a cruz] as inimizades.

Cl 1.19,20: “Porque foi do agrado do Pai que toda a plenitude nele habitasse, E que, havendo por ele feito a paz pelo sangue da sua cruz, por meio dele reconciliasse consigo mesmo todas as coisas, tanto as que estão na terra, como as que estão nos céus.”

A raiz grega da palavra reconciliar (apokatalassō) indica restauração, restabelecimento e cura. De fato as pessoas e a sociedade estão doentes. Quando um filho grita e estapeia sua mãe, quando um adolescente recebe a polícia à bala, quando um político eleito pelo povo desvia dinheiro que deveria ser usados na melhoria de vida de milhões de pessoas, estamos vendo o resultado da doença chamada pecado. Não gostamos mais dessa palavra; é obsoleta. Mas não há com ignorar seus efeitos diários em nossas vidas. Tapar o sol com peneira em nada ajuda.

A cura do homem é o que precisamos observar na expressão da nossa mensagem e missão diárias. A igreja deve curar as pessoas, não adulá-las. As pessoas estão separadas de Deus e para reconciliá-las, precisamos aplicar a Palavra que corta e opera, não uma filosofia ou promessa que ilude e mata.

Portanto, a mensagem da Igreja não deve ir ao mesmo sentido dos acontecimentos do seu tempo. Num ambiente que se separa de Deus matando o Salvador do homem, a igreja em Antioquia promovia a reconciliação pelo Evangelho, na prática missionária local e estrangeira. A igreja não pode ser uma alternativa cultural, ela deve ser a melhor – senão a única – opção espiritual: a única que reconcilia o homem com Deus.

“Assim que, se alguém está em Cristo, nova criatura é: as coisas velhas já passaram; eis que tudo se fez novo”. (2Co 5.17)
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